segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Despedida

Tchau. Despeço-me sem lágrimas. Não foste o melhor. Contudo, não foste o pior. Em alguns momentos, confesso, desejei a tua partida, mas nada disse, silenciei e esperei. Alguns te dirão: já vai tarde.

Virou hábito despedirmo-nos do ano que se vai. Como se o ano fosse uma coisa palpável. De certa forma, é. Podemos imaginá-lo uma linha na qual pontuamos os acontecimentos de um período, entre janeiro e dezembro. Nesta linha ou percurso, podemos nos situar e assim fazer uma retrospectiva pessoal.

Ao delinear a retrospectiva pessoal você pode se surpreender com quantas coisas conseguiu fazer ou com quantas não conseguiu. Pode ser que o tempo tenha sido traiçoeiro com você, ou você com ele. Não é o ano que é bom ou ruim. É o homem que tropeça aqui e acolá, na tentativa de acertar. Vale a pena se despedir ou não há qualquer fundamento neste rito de passagem que todo ano se repete?

Tenho por hábito não começar nada realmente novo em dezembro. Desacelero no fim de novembro. Dezembro é tempo de fechar as arestas, concluir. Dezembro é fechamento, acerto, reflexão e despedida.Despedir-se é desapegar-se. Largar o velho. Idéias que não funcionam precisam ser abandonadas. Pensamentos que nos fazem mal é melhor largar, soltar, para começar o ano livre das velharias. Velharia é o que não serve pra nada, como a mágoa guardada na mala. Velharia é deixar de ir à praia ou colocar um biquíni porque se está acima do peso. Velho é o que nos limita de viver bem. Novo é o que nos deixa feliz.

Cada pessoa pode ter seu próprio rito de passagem. O meu inclui solidão e natureza. A natureza me realinha para o novo ano que chega, mostra-me os enganos, os excessos, reconduz-me para o caminho do meio e da verdade, me dá energia e limpa os meus pensamentos.

Com as árvores aprendo a ser generosa: oxigênio, folhas, madeira, flores, frutos, é o que nos dão, sem pedir nada em troca, apenas que paremos e observemos; as pedras me falam de força e paciência; as montanhas me sussurram as grandes verdades que estão bem diante dos olhos e não enxergamos; as ondas do mar me ensinam que a alegria ora vai, ora vem (pra que desesperar?); as flores, lindas e efêmeras, parecem dizer: em tudo há beleza, mas passa, saiba olhar no tempo certo.

Termino o último pedacinho da linha do ano tomando muitos banhos, de lagoa, mar, cachoeira; deslumbrando-me com o vôo de um pato selvagem, deixando a pele branca receber com muita calma o primeiro sol. Largando-me de tudo. Dos papéis que exerço. Para ser aquela que verdadeiramente sou. Eu sou.

Assim, depois de amanhã, quando você se for, ano velho, estarei pronta para te soltar. É muito provável que não faça nenhum pedido, apenas mergulhe dentro de mim, feito um pato selvagem, em busca daquele tesouro que todos levam dentro.

In: Jornal a Notícia, Anexo, p. 3 (29/12/2008)

domingo, 21 de dezembro de 2008

Poema de Natal

Quando a festa termina
ajudo a limpar e organizar a casa:
junto papéis, pedaços de fitas e laços jogados pelo chão.
Mais tarde, antes de dormir,
tento unir os pedaços perdidos da alma e da festa.
Então uma estrela brilha no alto do céu do meu quarto
e eu durmo feito o Jesus menino.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Antes do Natal

Não sei quantos anos tinha quando, pela primeira vez, ajudei na faxina de Natal. Limpávamos a casa inteira: forro, sótão, paredes, chão, janelas (vidros e venezianas). Na certa, atrapalhava mais do que ajudava.

Se não me engano, começávamos no início de dezembro. A casa era enorme e cheia de esconderijos. E havia o pátio, com o jardim da frente, os canteiros dos fundos, o gramado, o galinheiro e o pomar que se estendia até o rio. No rio havia a praia para os banhos de verão. Outros tempos.

Cada pedaço da casa era limpo e organizado. Tirava-se tudo dos armários, limpava-se muito bem, escolhia-se o que ficava e o que não servia, para descartar ou doar. Havia tarefas para todos: mãe, irmãs, irmãos e pai. O rancho onde se guardavam bicicletas e ferramentas também passava pelo processo. Até o galinheiro. As galinhas ganhavam gamela nova e água fresca.

Tantas eram as tarefas que temíamos a chegada do Natal, antes que tivéssemos dado conta de fazer o pretendido. Mas isso nunca aconteceu. Outro receio é que não sobrasse tempo para a compra dos nossos presentes. Isso também nunca aconteceu.

Na véspera de Natal, a cozinha mais parecia um restaurante: mesa cheia de fôrmas de cuca e doces, galinhas sendo recheadas antes de assarem, forno em brasa. Um exército de pessoas trabalhava sem nenhuma pressão ou briga, na mais perfeita harmonia e alegria. Verdade e saudade.

De tanto olhar e ajudar, acabei aprendendo as tarefas. Quando minhas irmãs começaram a trabalhar fora, passei a fazer muitos dos serviços da casa, sob o comando da mãe. Ela acordava às cinco horas da manhã e acabava dormindo no sofá, com a TV ligada, de tanto cansaço. Abria os olhos quando um filho chegava do trabalho, cumprimentava e tornava a fechá-los de forma automática.

Enfeitar o pinheiro e fazer o presépio eram nossas tarefas natalinas favoritas. Cortar o pinheiro dos fundos da casa, que todo ano brotava, era serviço para homem. Enfeitá-lo, serviço de mulher. Os menores penduravam apenas uma bola ou cabelos de anjo na parte mais baixa da árvore, supervisionados pelos irmãos mais velhos.

Alguns preferiam enfeitar o pinheiro, outros, fazer o presépio. A cada ano montávamos de um jeito diferente. Toda a vizinhança vinha à nossa casa ver o cenário do nascimento de Jesus. Não havia luxo. O jogo de peças era o de sempre: menino Jesus, José e Maria, três ovelhinhas, uma vaquinha e um boizinho. O resto, inventávamos: caminhos, árvores, casas, pessoas, bichos. E nem conhecíamos Franklin Cascaes.

In: Jornal A Notícia, Anexo, p. 3 (15/12/2008)

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Dasabrigados (crônica)

– É aqui, pai?
– Sim filha, é aqui.
– Gostei.
– Olhe o seu quarto novo...
– Que lindo, pai!
A mãe prepara o primeiro almoço na casa nova.

Anos mais tarde, numa enchente devastadora, a casa sumiria, o morro desabaria em lama sobre o quarto, cobrindo boneca, menina, mãe, pai. Engolidos pela montanha.

Ou então: a casa desabou, mas os três se salvaram por um triz, quis o destino (ou a sorte, ou o anjo) que estivessem fora, em viagem, quando a avalanche desceu. Ao retornar, o pai olha a casa desabada e não acredita, a mãe perde a fala, a filha chora.

Caminham os três desalentados pela rua. Ainda ontem tinham casa, quarto e cama, de repente, tudo tomado de lama. E a alma? Molhada de chuva.

Desorientados. Quem tirou a casa que estava aqui? Cadê nosso porto seguro? É na casa que SOMOS, é na casa que tiramos a roupa, tomamos banho, dormimos, fazemos amor com o companheiro, guardamos os segredos, os sonhos, os brinquedos. É na casa que choramos.

E num estalar de dedos, ou um lance de dados, tudo nos é tirado, o brinquedo, o sonho, a casa, a liberdade.

Abrigados num abrigo. A solidariedade aconchega. Comida não falta, nem colchão, mas dentro, meu Deus, uma memória que não se apaga, a lembrança da construção, dos sacrifícios de anos de trabalho, do dinheiro juntado para comprar a casa, os móveis, as roupas; a primeira olhada pela janela da casa, a vista da cozinha, o cheiro de café, tudo vem e vai enquanto a noite cai.

Alguns saíram às ruas saqueando coisas, desespero aliado a despreparo, falta de paciência, medo. E se a coisa piorar, e se a chuva não passar, e se o barro não secar, como será?

O morro do baú. Era uma vez o morro do baú. Depois veio um dilúvio, quarenta dias e quarenta noites. Lama e mortes.

A casa, o porto seguro, refúgio das dores do quotidiano, alicerce onde reinamos. A casa caiu, a casa sumiu, a casa cheia de água. O coração cheio de lágrima.

Mas a força brota, de algum lugar a força brota, de mangas arregaçadas as paredes são lavadas. A vida segue, vamos em frente, daqui mais uns dias, mais uns meses, mais uns anos, quem sabe...
– É aqui, pai?
– Sim filha, é aqui.
– Gostei.
– Olhe o seu quarto novo...
– Que lindo, pai!
A mãe prepara o primeiro almoço na casa nova.
In: Jornal a Notícia, Anexo, p. 3 (05/12/2008)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Dilúvio (crônica)

A chuva começa com um pingo e mais outro. Também pode começar com um dia de céu azul. Talvez o indivíduo saia de casa pela manhã com sol e se arrependa de não ter calçado botas de borracha. Nenhuma certeza de que o tempo não mudará entre a manhã e a noite, entre a ida e a volta do trabalho, entre o anoitecer e o amanhecer.

Os noticiários anunciaram que choveria acima do normal, mas o que seria acima do normal para quem já estava numa maré de chuva há meses, com praticamente todos os finais de semana do semestre chovendo? Nenhuma praia ainda, a pele branca, mas isso era o de menos, até porque a saúde está nas peles que menos tomaram sol.

Nutrimos a falsa idéia de que se pode tudo, de que natureza é uma coisa que nem mais existe, afinal, a água é da empresa que nos vende; a energia da empresa que nos cobra; e a terra em que moramos foi comprada... ainda não pagamos pelo ar que respiramos.

Moramos em prédios, moramos apertados e nos assustamos ao encontrar o supermercado lotado em pleno domingo ao meio-dia, sendo que estavam lá apenas os menos atingidos, porque os mais atingidos estavam tentando segurar barrancos ou ilhados ou em abrigos.

Sensação sinistra, por pouco a coisa não fica ainda pior, pois no domingo à noite as águas baixavam em Brusque, mas subiam em Itajaí. Nem uma tristeza se dissipara, outra, ainda maior e mais pungente, começava. Somente na segunda-feira os jornais de porte nacional se deram conta do tamanho da catástrofe.

Geólogos e geógrafos tentam explicar, engenheiros mostram projetos. A grande verdade é que o mundo parece pequeno e insuficiente para a quantidade de pessoas que o habitam. E as pessoas que o habitam perderam a noção do bom senso. O conhecimento produzido não é aplicado para uma efetiva melhoria da convivência humana no planeta Terra. Nem países mais evoluídos conseguem isso, imagina o Brasil.

Dias antes, o comércio focado em vender para o Natal, as famílias preocupadas em consumir. Uma insatisfação coletiva pairava no ar, nada é suficiente para a felicidade permanente. Então vem a catástrofe e pega todos de surpresa. De maneira que ninguém mais tem certeza de nada, olhamos atônitos para a estatística dos mortos e dos sonhos soterrados ou submersos.

Deveríamos estar mais preparados para as adversidades, mas a ilusão nos rodeia. A vivência em abrigos pode nos ensinar a ver o outro mais de perto, devemos ajudar os mais necessitados agora e adiante. Urge que cuidemos da mãe natureza e que as prefeituras planejem e fiscalizem melhor. Liberar áreas impróprias em troca de favores políticos, cortar morros e devastar matas são cenas corriqueiras em Santa Catarina. Adiante a catástrofe.

Precisamos evoluir, nos tornar mais sábios e fraternos. Isso não será fácil, pois o sistema que nós ajudamos a criar transformou-se em um jogo de interesses. Vivemos numa imensa ilha, o que atinge um, inevi-tavelmente, atingirá o outro.

In: jornal A Notícia, caderno Anexo, p. 3 (01/12/2008)

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Rachel e Sabrina (crônica)

Em algum momento da vida compraremos uma mala. Antes de viajar, por exemplo. Entramos contentes na loja, analisamos o tamanho, a cor, a qualidade, vai que arrebente, não queremos que nossa mala se arrebente no meio da viagem, nem que seja grande ou pequena demais, por isso, às vezes, algum familiar ou amigo nos acompanha e ajuda na compra. Quando viajamos, levamos na mala objetos de uso pessoal, roupas, um livro ou revista. O destino da mala é este. Assim, as malas seriam felizes. Mas tem quem invente outro. Então a mala vê o horror dentro de si, pior, é usada para escondê-lo. De maneira que se esforçará para que alguém a encontre o quanto antes, afinal, está assustada sob a escada da rodoferroviária de Curitiba, onde cada minuto parece uma eternidade. Está disposta a ajudar a polícia na identificação do sujeito que cometeu tamanha atrocidade com a menina. Ela sabe quem foi.

Há quem jogue fora a caixa do televisor no mesmo dia em que compra o aparelho. Os precavidos guardam alguns dias, até que o aparelho seja testado. Muitas vezes, esquece-se da caixa, então ela fica lá nos fundos da casa, pegando chuva e ouvindo latidos. Destino incerto, o das caixas. Quando fabricou a caixa de papelão, o funcionário uniformizado da empresa de papel e papelão, em um momento de devaneio, imaginou para que serviria aquele produto: pelo tamanho, deduziu, guardará uma TV de 29 polegadas. E depois? Serviria de abrigo a algum mendigo, de cabana para alguma criança brincar... Isso deixa o funcionário satisfeito com o seu trabalho. Por algum erro do destino, a caixa foi encontrada na praça Nirvana, embrulhando o corpo morto da Sabrina.
Se de um lado a mala, sem querer, participou desse crime brutal, por outro, servirá de pista para que se identifique o assassino. A caixa de papelão, por sua vez, desejaria ter qualquer destino, menos esse; porém, foi decisiva na revelação do criminoso, por causa de uma etiqueta que ostentava. Tudo leva um código, até nós, apesar de andarmos soltos pelo mundo; vazios como caixas, muitas vezes, e aventureiros como malas, de vez em quando.

Mas o código de que as duas meninas-moças gostavam, pelo que soube por meio da imprensa, é aquele que existe há seis mil anos, o das palavras. As meninas adoravam ler. Boas alunas na escola, tinham um futuro promissor. Pais que as amavam. Rachel (nove anos) havia tirado primeiro lugar num concurso de redação da biblioteca do Paraná. Seria escritora?

Difícil compreender a lógica do mundo.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Memória (crônica)

O primeiro a me notar é o cão. Late da porta dos fundos da casa. Ao ter certeza de que sou eu quem chega, corre de um lado a outro, esbaforido.
– É um bobo, diz mamãe. – Nunca viu gente.
Abraço o cãozinho. Ele me deixa alegre.
Ela pergunta se quero café. Digo que não, já havia tomado em casa, antes de sair.
– Tudo bem? – Cumprimento com um beijo.
– É, vai indo. – Esqueço de tudo e sinto fraqueza nas pernas.
Gostaria de esquecer algumas coisas, penso. Convido: – Vamos olhar o jardim?
Busco a bengala. Começamos pelo canteiro que contorna a casa, na lateral esquerda. Ela se agacha para erguer a haste que sustenta uma dália exuberante. Pede que eu busque um barbante. Prende a flor ao bambu.
– Não achas linda? – pergunta.
– Sim, mãe, belíssima.
– Nunca mais vi a gata. Acho que a envenenaram também.
– Ela estava no parapeito da janela quando cheguei.
– Estava? Não lembro.
O cachorro pula alegre nos meus joelhos, faz festa.
– Os antúrios estão pedindo terra. Precisas me levar na floricultura para comprar barro.
– Claro, mãe, no sábado, quem sabe...
– Gostaria de comprar algumas mudas de verduras. As da outra vez não vingaram.
– Que pena!
– Os antúrios estão lindos, né! Queres levar alguns pra enfeitar tua casa?
– Não, mãe, obrigada, gosto de vê-los na natureza. Tem jabuticaba?
– Talvez.
– Veja só quem está deitada sob a árvore. Que lugar mais gostoso a Mimi escolheu.
– Sua porqueira, diz mamãe com carinho. E a enxota para que nós duas nos enfiássemos sob a árvore e comêssemos alguns frutos doces.
– Viste o jasmim? Carregado de botões. Teu pai adorava esta flor. Pediu que plantasse perto da janela do quarto. Disto eu me lembro bem. Mas outras coisas se apagam. Faz dias não vejo a gata. Acho que a mataram.
– Mãe, ela esteve agorinha aqui, sob a árvore.
– Esteve?
Noto uma tristeza aflita em seu rosto. Tento amenizar.
– Eu também não me lembro de tudo. Certas passagens da vida são brancas como as pétalas do jasmim. Às vezes é bom esquecer.
–Vamos sentar na varanda e ver o tempo passar, convido. - Na varanda o tempo passa mais devagar.
– Olha aquele casal de passarinho namorando no fio de luz.
– E aquela borboleta.
– E a rosa do amor. Preciso podá-la.
– Não, mãe, deixe-a assim, bela e selvagem.
– O portão precisa ser pintado.
– Deixe-o assim, é o registro do tempo sobre ele, uma espécie de memória.
O cão chega esbaforido e se deita no meio de nós. Desatamos a rir. Mais uma manhã para se guardar na memória.

In: Jornal A Notícia, Anexo, p. 3 (10/11/2008)

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Era uma vez (crônica)

Ganharam de presente um casal de filhotes de marreco (ou seria de pato?). Passaram a ser os mais bem-tratados do galinheiro. Afinal, antes os donos do local só criavam galinhas. Agora, estes dois bichos novos, com bicos e asas e cores diferentes, grasnando de um outro jeito.
Quem vive no sítio, sabe, de manhã cedo é hora de tratar os bichos. Claro que se o tratador tiver um olho poético poderá apreciar as águas do rio e o brilho do sol enquanto executa as tarefas. Morar no sítio já é uma poesia. Imagine nos tempos em que se passou esta história, que não é de mentiroso, pois aconteceu de verdade, com pessoas da minha ancestralidade que moravam no interior.
Interior é aquele lugar em que as pessoas moram longe umas das outras, onde as árvores não incomodam, nem as galinhas e nem os patos. No interior, o tempo passa de um outro jeito, o fogão queima lenha, o café é coado, as cucas são feitas em fornos de tijolos, o cachorro é vira-lata. Tem carroça, cavalos, bois e vaca. Interior que se preze tem leite fresco e morno. Grama a vontade e rosas na frente de casa.
Neste cenário, crescia o casal de marrecos. Os donos se admiravam da beleza daquelas duas aves. Mas todo mundo sabe, mais cedo ou mais tarde, qual o destino dos bichos, mesmo que no sítio. Talvez as aves soubessem, talvez não. Vendo-as passearem despreocupadamente e nadarem no pequeno lago instalado no terreiro, pensava-se que de nada sabiam, tranqüilas, belas, penas exuberantes, bicos arredondados, chamavam atenção de todos que passavam (poucos criavam patos naquela época, ao menos naquela redondeza).
Assim se passavam os dias, acordar e dormir, comer e nadar, nadar e andar, andar e voar pedacinhos, bater asas fortalecidas, afastar as galinhas como se fossem de menor importância, até o galo as temia, afinal, eram grandes aquelas aves, tinham um código próprio, criaram uma aura em torno de si, de maneira que viviam como bem queriam. Davam as cartas no galinheiro, apesar do galo.
Do jeito que me contam a história, não se sabe quem as viu primeiro, se a esposa ou o marido. Certo é que todos contam assim. Que mal clareou o dia, um deles viu da janela o casal de marrecos voando já numa altura impossível de “caçá-los”, na direção que o rio Itajaí-Mirim descia, ou seja, mais para o centro da cidade. Fugiram. Cercas não prendem asas.
Os donos ficaram estupefatos e tristes. Nutriam carinho por aqueles bichos, estavam acostumados. O marido selou o cavalo e tentou segui-los, mas foi despistado, havia nuvens e árvores e curvas e montanhas e tanta água e tanto rio.
Mas esta história não termina assim. Conta-se que os marrecos pousaram nas terras não sei de quem, onde havia um imenso banhado, com pequenos lagos. O dono não foi buscá-los. Entendeu o desejo de liberdade das aves. Dizem que vivem por lá. Felizes como nos contos de fadas.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Pra não dizer que não falei de livros
(Colóquio para alunos do Ensino Médio – SENAI)

Na Bíblia tem uma frase que diz mais ou menos o seguinte, diga-me com quem andas que eu te direi quem és. Passando para o universo literário, eu me pergunto e lhes pergunto: com quem andamos, quais os livros que lemos ao longo do caminho, desde nossa infância até o atual momento? Volto no tempo e lembro-me de minha primeira experiência de leitura guardada na memória, quando minha mãe lia a história sagrada numa noite de trovoada, intercalada com outras, como a de João e Maria (Mamãe adorava contar a história de João e Maria, mas nunca nos contava do mesmo jeito, pois inventava). Depois nós contávamos historinhas uns aos outros. Até que chegou a escola e as primeiras linhas lidas. O gato gosta da bola, o gato se enrola feito uma bola e rola. Os contos de fadas. Leitura em família, com a mãe, ou o pai, ou um irmão. Leitura com amigos. Leituras solitárias com a porta do quarto trancada. Leitura de gibis. Empréstimo de livros entre amigos. A possibilidade de falar sobre. Rindo sozinho durante a leitura engraçada de uma passagem do livro. Gargalhando no ônibus, no sofá e até no banheiro. Alguns livros nos fazem chorar. Viramos o rosto no travesseiro e choramos copiosamente. Livros com dedicatória. Para meu irmão João, com carinho e admiração. Para Luísa, pela passagem de sua primeira comunhão. Livros que damos de presente, qual escolher? Um universo para outro universo. O dinheiro que levamos dobradinho no bolso para presentear a nós mesmos. O dedo passando de-va-garinho sobre as capas, a ilustração, o tamanho das letras, o nome do autor que já se tornou nosso amigo, confidente. Livros que nos convidam a anotar coisinhas ou sublinhar passagens (sempre a lápis), livros que esquecemos de devolver a um amigo e cada vez que olhamos nos lembramos do amigo e de nosso esquecimento, livros que emprestamos sabendo que estamos dando. Livros das bibliotecas, com etiquetas na lombada, carimbo e carinho da bibliotecária. Livro que já passou por muitas mãos e olhos, quantas vezes um livro da biblioteca é lido, uma, dez, 100, ou nenhuma? Livro guardado. Livro do sebo, com cheiro de usado, mas com o mesmo texto de um novo, o mesmo conteúdo, por um preço bom. Livro que não emprestamos de jeito nenhum. Livros que passeiam conosco. Na praia, no banco, no intervalo do almoço. Livro em branco com versos espaçados. Livro com folha cheia de letras miúdas. Livro grosso. Livro fino. Livro que se leva uma vida inteira para ler. Livro lido em uma hora. Livro virtual. Livro normal. Se empilhasse todos os livros que lemos um sobre os outros, daria para atingir a altura de uma xícara, de uma mesa, de uma porta? Livro passado de pai para filho. Livro juntado do lixo. Livro atirado no lixo. Livro de ação, aventura, poesia, sexo, romance, livro ao nosso alcance, livro difícil, livro técnico, livro que o autor levou a vida inteira para escrever, livro de auto-ajuda, livro fácil. Quando lemos? Antes de dormir, aos sábados, aos domingos? Deitados, sentados? Com o livro ao colo ou apoiado sobre a mesa? Alguns apóiam sobre o travesseiro. Ler na cama é bom. Um poema antes de dormir. Um beijo depois.

Livros e leitura (crônica)

Há muito, muito tempo, no Dia das Crianças, eu e minha irmã fomos presenteadas com um pacote comprido e fino. Eram livros. “Rique-Roque, o Ratinho Sonhador”, de Maria Thereza Cunha de Giacomo, foi meu primeiro livro. Afeiçoei-me a ele instantaneamente. Adorei a história daquele pobre ratinho sonhador com fome de lua, ilustrado por Darcy Penteado. Mais tarde, soube que se tratava de um excelente ilustrador e de uma escritora premiada (o primeiro livro a gente nunca esquece).

Não sei como surgiu meu gosto pela leitura. Venho de uma família grande (13 irmãos). Meu pai cursou somente o primário e minha mãe estudou apenas um ano. Mamãe dizia que se o pai dela a deixasse estudar mais um ano, seria professora. Devido à religiosidade fervorosa de meus pais, as primeiras leituras que ouvi em torno de mim foram das Escrituras e do livro de terço. Penso que as orações e as repetições do terço me prepararam para a cadência dos versos.

Desde bem pequena ia à biblioteca do Sesi pegar livros emprestados (ficava a mais ou menos dois quilômetros de casa), às vezes ia a pé, noutras de bicicleta. É provável que tenha saboreado todos os livros de contos de fadas daquele pequeno acervo. Era um tal de ir e voltar carregando livros, pedalando no mundo da fantasia, voando sobre os morros floridos e encantados. Costumava ler à noite, pois durante o dia ia à escola e ajudava no trabalho da casa ou da roça; a não ser que chovesse.

Selires era o nome da minha professora da quarta série. Certa tarde, pouco antes do término da aula, abriu um livro com cheiro de novo que trouxera da própria casa. Iniciou o que seria uma das mais lindas histórias que já ouvi contarem, com voz pausada e macia. Sábia, encerrava as aulas todos os dias alguns minutos mais cedo, para nos ler um trecho da história. Ah, “Os Cisnes Selvagens”, de H. C. Andersen!

Penso que nascemos com o gosto pela leitura, mas é preciso haver um estímulo externo. Os livros conversavam comigo de um jeito ameno, suave, alegre ou profundo. As verdades ou sonhos lá contidos eram parecidos com o que levava dentro. Por isso, a vontade crescente de chegar a algum lugar por meio do texto, de conhecer a história até o final, para chorar, ou sorrir (feito o cisne ex-patinho feio) antes de dormir.

Depois, vieram outras leituras. Houve a fase de ler todos os títulos (disponíveis nas bibliotecas da cidade), de Laura Ingalls Wilder; os de José Mauro de Vasconcelos (o meu gosto por filosofia oriental começou ali, com o “O Palácio Japonês”), sem contar que eu também tive a minha árvore amiga e confidente (um pé de ingá).

De lá pra cá, muita coisa aconteceu e muito tempo se passou. Muitos livros foram lidos. Ler um livro é ler a si mesmo. É mergulhar no abismo e retornar com uma estrela brilhante.

Não despertou para o prazer da leitura? Ainda há tempo. Eles nunca estiveram tão perto. Basta acessar no computador, dirigir-se à biblioteca mais próxima ou à livraria. Quem lê, cintila.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Beija-flor (crônica)

Quem não se encanta em vê-lo voar? Pássaro miúdo de aparência frágil que habita nossas cidades e surge de maneira surpreendente, quebrando a rotina do dia. Quem não se encanta embevecido ante a criatura que bate mil vezes as asas no ar ao sugar o néctar da flor?

Costumo receber a visita destes pássaros minúsculos e graciosos no apartamento em que moro, no centro. Procuram por uma flor, diz a ciência. Procuram por mim, por alguém, por algo mais, pensa minha alma de poeta. Fico quieta. Não me mexo. Esfinge, para não afugentá-los.

Na biblioteca, volta e meia um desses nos visita. Esvoaça sobre nossas cabeças, passeia pra cá e pra lá, pousa nos livros, sobre um Borges, uma fileira de Clarice Lispector. Voa desajeitado à estante de literatura estrangeira, esbarrando num Stephen King. Assustado, encontra a janela aberta, o vento, o vôo. Talvez nunca mais volte. Sem nunca ter lido Poe.

Suzana, você está fugindo do assunto da hora, a bolsa. Ora, ora, deixem a bolsa pra lá. Tanta ganância assim. Diga-me, beija-flor, se você investe na bolsa, se especula tudo e tanto e mais. Cedo ou tarde, a farra ia terminar.Lembro-me do pássaro que entrou na minha casa e voou direto à estante dos livros. Pássaro sabido. Eu? Fiquei longe, bem longe, pra não atrapalhar. Será que lia Fernando Pessoa, Quintana, ou algum outro livro bacana?

Leitor, me achas tola por bater de leve nestas teclas para te contar insignificâncias? Saiba que não me importo de ser tola e tolamente olhar os pássaros que me visitam e acreditar que exista motivo. Meu desconhecimento da ciência é voluntário. Ainda que saiba que pétalas são folhas. Ainda que saiba, jamais olharei uma pétala como a folha que é.

Talvez passe pela sua cabeça, leitor, que eu seja uma pessoa egoísta. O mundo todo voltado para salvar as bolsas e os bancos e os bolsos de pessoas que nunca vi em minha vida (e eu tola). Tu deves estar me achando egoísta, mesquinha, ou desligada. Mas não é exatamente assim. Sei que existe uma crise mundial porque pessoas que investiam em determinadas “ações” e “títulos” deixaram de investir nisso e partiram para outros investimentos e outras “rendas”.

Na verdade, as ações que me interessam são as da vida real, nunca peguei uma ação daquelas na mão. O título que muito me interessa é o que vai nas lombadas dos livros, no alto dos textos e dos poemas. E a renda, claro, a que enfeita roupas e almofadas.

Após a leitura do parágrafo anterior, talvez tu cogites a possibilidade da minha inexistência. Mas eu e milhares de pessoas que nunca viram títulos ou ações existimos sim. Simplesmente levamos no bolso o dinheiro suficiente para viver. Feito um beija-flor voamos pela vida. Sem mania de grandeza, sem grandes investimentos, sem grandes fortunas. Temos asas, sonhos e alegria. Isto nos basta.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Sete mulheres e um gato (crônica)

Quando Eunice convidou Gertrudes para o café, esta foi logo alertando: "Não sou boa nisso". "Não faz mal", disse a primeira, "assim tem sido, estamos todas no mesmo barco, ninguém se considera plenamente feliz nisso". "Ou, se alguém se considera, não nos conta", emenda Gertrudes. "Ou não é do nosso círculo", conclui Eunice.

Ao entrar no apartamento vivamente decorado, Gertrudes se sentiu confortável, como se aquelas paredes fossem a roupa que melhor lhe coubesse. Outras amigas já haviam chegado, todas para conversar sobre aquilo. Na verdade, o tema não fora escolha aleatória, nem o café. Eunice desenvolvia uma pesquisa para o mestrado dentro daquela temática.

As colegas chegavam e se cumprimentavam. Algumas se conheciam apenas de vista, outras se conheciam um pouco mais. Não havia, digamos, uma amizade profunda entre elas, daquela capaz de nos fazer até contar segredos. Todas tentavam se mostrar completamente desinibidas. Aliás, não foi difícil desinibir-se, pois, assim que as moças adentravam, a anfitriã lhes oferecia, em vez de café, vinho. O convite sugeria que levassem um livro que abordasse aquilo. Pessoas cultas que eram, nenhuma se esqueceu de levar, aliás, teve quem levou até mais de um.

Havia um gravador ligado na mesa de centro da sala de estar, onde as moças conversadeiras se instalaram aos poucos. Do sexo oposto, apenas o gato, um felino esperto, observador e irônico. O bichano saía da sala nos momentos mais conflitantes da conversa - vê-se que o perfil masculino encontrado nos homens atua também nos gatos, ou vice-versa.

Vinho vai, vinho vem, as mulheres desenrolavam a língua e contavam fatos sobre como lhes fazia bem a presença daquilo ou de como a falta lhes fazia falta. Mas tudo dentro de um certo equilíbrio. Todas se mostravam modernas e desenvoltas, capazes de sublimar aquilo das mais diferentes formas, afinal, eram mulheres vividas, experientes. Se bem que, em algumas situações, pareciam umas tolinhas, umas adolescentes.

Em dado momento, a anfitriã convidou o seleto grupo de sete mulheres para irem até a cozinha servirem-se de lasanha. Serviam-se e retornavam à sala para comerem soberbamente. O único momento em que se fez silêncio. No intervalo entre um prato e outro, uma delas deixou escapar: "Outro pecado interessante, a gula". "Sem dúvida, mas eu gosto mais do outro", emenda alguém, sem pestanejar.

Antes que se dessem por satisfeitas, a anfitriã anunciou que a sobremesa foi servida. Nenhuma se fez de rogada. Entre um doce e outro, voltavam a dialogar sobre aquela questão fundamental, do que seria melhor: isto ou aquilo?

Após o lanche, as sete mulheres já não achavam tanta graça em continuar a conversa, talvez por conta do efeito do vinho que passara, ou por conta de que um dos pecados fora muito bem saciado, ou porque as horas avançavam. Fato é que uma por uma se levantou do sofá em atitude de despedida, alegando coisas para fazer em casa, filhos para cuidar... Foi quando a anfitriã levantou a hipótese de convidar homens para a próxima reunião. Todas acataram de imediato, afinal, eram modernas e democráticas, não tinham intenção de fazer nenhum clube da Luluzinha.

Então estava combinado, para a próxima convidariam homens. Não valia homem casado, apenas solteiro, bonito e gosto... quer dizer, inteligente.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Poema (autora: Regina Carvalho)

Supliquei
ao deus do espelho
que com seus velhos
olhos cruéis me fitava:
me deixa amar novamente
como amei aos 20 anos
amor de ilusão
e esperança
Calado ele estava,
calado ficou.
Pousado na cabeça
cega
de Minerva
o corvo , porém,
sentenciou:
nevermore, nevermore!

Regina Carvalho é professora aposentada da UFSC e escritora. Mantém o divertido (e inteligente) blog "Coisas de Regininha" (veja link ao lado).

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Cuidado: naufrágio (crônica)

Sou uma pessoa bem comum. Mantenho certas rotinas. Minha cabeça demora a acordar. Se não tomo café com leite pela manhã, não sou gente. Era justamente isso que fazia, preparava meu café da manhã. Nós, humanos, costumamos pensar enquanto fazemos coisas triviais. Pensava justamente que vivemos uma época em que não se pode reclamar de nada, a época do conformismo. Na verdade, pensava inconformada, a falta de espaço para se conversar sobre isso é que tem gerado muita confusão. Semanas antes da eleição (que foi ontem), eu me questionava se valia a pena publicar um texto que falasse de política, engajado.

Após o café, outra rotina da manhã, ir ao computador checar e-mails. Eu sempre me pergunto se vale a penas checar isso todas as manhãs, pois, afinal, pouquíssimas das mensagens que recebo são escritas para mim, a maioria delas são encaminhadas, muitas são propagandas ou convites para eventos. Um e-mail encaminhado por uma amiga trazia o seguinte título: "O melhor e-mail do mundo". Confesso que não costumo ler esse tipo de mensagem, classificada por mim como de auto-ajuda. Mas a minha reflexão da manhã era justamente se deveríamos nos conformar com tudo, com o governo, com o salário. Se nos conformarmos com tudo, tudo ficará exatamente do jeito que está? Não, se nos conformarmos com tudo, ficará pior, infelizmente.

Não devo reclamar de nada nem lutar por nada melhor, segundo o texto bilíngüe com imagens, que dizia mais ou menos o seguinte: se você não está contente com o transporte coletivo de sua cidade, veja este (então, a imagem mostrava pessoas de outra cultura caminhando sobre uma ponte de cordas); se você acha que a vida não está boa para você, então veja a vida deste guri (a imagem mostrava um menino carregando um homem numa espécie de carrinho de mão). Sem dúvida, "O melhor e-mail do mundo" tinha imagens impressionantes, quase me convenceu. Na verdade, nunca soube precisar qual vida é melhor, se a minha ou a de um africano, se a minha ou a de um menino que carrega outro homem numa espécie de carrinho de mão, se a minha ou a de uma mulher que aos cem anos carrega gravetos nas costas e por isso anda curvada. Como saberia?

Tenho outro nome para mensagens assim: auto-engano. Cada cultura tem sua história. E, claro, a mensagem foi desenvolvida no Ocidente e mostra, em sua maioria, imagens do Oriente. Quem conhece um pouco de história, sabe muito bem por que há tanta pobreza lá e riqueza cá. A discrepância não é maior porque nem todo mundo se acomodou por lá, aliás, todos sempre lutaram, muitos, inclusive, morreram lutando. O texto também não respeita nem um pouco as diferenças culturais, afinal, os norte-americanos não preservaram sua cultura, pois não a tinham, não nasceram naquelas terras, vieram de outras e praticamente exterminaram os que lá moravam quando da colonização. Além disso, não vejo nenhuma abordagem ecológica ou social no texto, apenas conformismo: aceite a vida que você tem sem reclamar, sem lutar, sem poder sequer desejar outra coisa.

Isso pra mim não serve. Eu quero sim uma vida melhor, um planeta melhor, conviver com pessoas que sonham um mundo melhor e não se conformam com tudo e deixam o mundo naufragar.
In: jornal A Notícia, Anexo, p. 3

domingo, 28 de setembro de 2008

Poema para Thomas

Thomas, teu nome
(Thomas Mann)
Thomas homem

Tomo teu nome em meu verso
em meu avesso
tomo teu nome por inteiro

Teu nome e um cravo vermelho
teu nome e uma tatuagem na mão
teu nome e um regador
Thomas bom

Então, vem, Thomas,
sejamos tu e eu
a tomarmos o café da manhã

E depois?

Depois vamos ao jardim
cuidar das zínias e da
boca-de-leão

O nome do nosso cão? Flox
Rolamos os três no tapete de primavera
tomados de enorme felicidade

Como é mesmo teu nome
(quando nos conhecemos):
Thomas

No dia seguinte:
toma, colhi estas flores para você
colhi estas flores para você me ver nelas
toma, sou o Thomas e colhi estas flores para você me tomar junto com elas

As minhas mãos tomaram um susto
estavam desacostumadas a tomar flores
as minhas mãos trêmulas

Ou então foi uma brisa que soprou
brisa de primavera
brisa de amor

sábado, 20 de setembro de 2008

Floema

Chuva
em algum lugar se esconde a estação das flores
da chuva de flores
da chuva que brota do chão
da chuva que desdobra-se em pétalas e cor
da chuva que tem outro nome
da chuva que me põe em transe

Dois olhos
mil flores

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

A culpa é do marceneiro (crônica)

Telefono pra amiga no meio da tarde. Um homem atende:
- Alô! (voz grossa e bonita)
Fico sem saber o que dizer, pois a minha amiga mora sozinha. Um sorriso faceiro se forma em meus lábios, enquanto pergunto:
- Quem fala?
Era pra ter perguntado outra coisa. Deveria perguntar pela pessoa que procurava, por exemplo:
- A Flávia se encontra?
Ou:
- Poderia falar com a Flávia?
Ou, de forma mais vaga:
- É aí que mora a Flávia?
Mais técnica:
- Liguei pra qual número?
Ele, bastante objetivo:
- A dona Flávia saiu. Sou o marceneiro.
O risinho cínico continuou nos meus lábios.
Ele: - Ela volta logo.
- Tudo bem.
- Quer deixar recado? Pergunta atencioso com aquela voz de barítono.
- Não, obrigada, ligo mais tarde.

A nítida, fantasiosa e falsa impressão de que ao telefonar interrompi alguma coisa, qualquer coisa que não fosse um trabalho de carpintaria sobre uma superfície de madeira. Qualquer coisa que fosse um trabalho de carpintaria sobre uma superfície macia, deslizante.

Mais tarde, Flávia me ligou. Ela não estava com cara de quem estivera ajudando na marcenaria.

Acho que a Flávia é como eu, não suporta a presença de estranhos na casa. Vai logo saindo. Prefere deixar a casa sob os cuidados atenciosos de um marceneiro, encanador, técnico de parabólica, de computador, mesmo que durante essa ausência ele fuce nossas gavetas, armários... Como iríamos saber?

Pior seria se ele fuçasse nossas mãos, braços, olhos, pensamentos, fazendo com que nosso equilíbrio ficasse por um fio ao percebermos as botas sujas, os farelos de madeira caindo sobre o piso recém limpo ou, então, tendo de ouvir comentários do tipo: "Tá na hora de trocar isso, dona", ou: "Quem foi que consertou isso antes? Fez tudo errado!"

O marceneiro poderia não ter atendido ao telefone. Ora, se a dona da casa não estava, pra que atender? A culpa é dele e não minha. Não teria imaginado e a Flávia não ficaria tão inflamada (zangada) comigo. Ora bolas!

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Vernante

Novamente Kafka
trazendo a compreensão do incompreensível
através do lugar nenhum
e das portas que não se abrem
(movimento circular e anulável)

Literatura da verossimilhança
leitura dobrada e desdobrável
(havia uma segunda camada de pétalas)

Preferível viver com Kafka
e com as portas fechadas
mesmo porque
não existe comunicação efetiva
entre os interesses aflitivos

Preferível
o mundo verossímil
em alto estilo

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Outra coisa (crônica)

"Entra pra dentro que o sole tá quente." Meu pai me matava de vergonha. Era sempre a mesma coisa. Cada vez que chegava alguém lá em casa, era isso que ele dizia. A não ser que chovesse. Mas as visitas só vinham em dias de sol, em dias de chuva as pessoas preferem ficar em suas casas.

Tentei ensinar-lhe que "sole" é sol e que "entrar pra dentro" é uma redundância, mas logo percebi a inutilidade de meu ensinamento. Não que meu pai não fosse um homem inteligente, o fato é que os parentes que nos visitavam falavam um português ainda pior do que o de meu velho pai.

Constrangia-me quando os meus colegas de escola iam lá em casa e a primeira coisa que meu pai falava (parecia uma praga) era "entra pra dentro que o sole tá quente". Percebia nos colegas a vontade de rir. Disfarçavam para rir depois, acho.

Sentia pena do meu pai, contudo não demonstrava, pois sei que as pessoas não gostam de saber que sentimos pena delas. Na verdade, meu pai adorava gente. Por isso, quando estava de folga, sentava próximo da porta dos fundos, por onde as visitas normalmente passavam. Ou seja, era o primeiro a recebê-las.

Entristecia-me o fato de que as pessoas rissem de meu pai. Pois eu sabia que ele não tinha culpa de falar assim. Aliás, ele tinha um jeito bonito de falar. E havia tantos que falavam ainda pior. Principalmente os que moravam mais pra cima de nossa casa, em direção ao interior. Já os que moravam mais pro lado de baixo, na direção do centro da cidade, falavam melhor.

Nasci entre o interior e a cidade, num lugar que não era nem uma coisa nem outra e as duas ao mesmo tempo. Havia uma tecelagem do outro lado da rua, coisa de cidade; um rio de prainha limpa passava nos fundos de casa, coisa de interior.
Até a quarta série, estudei na escolinha que ficava mais pra cima de nossa casa. Quando, a partir da quinta série, mudei-me para uma escola maior e mais próxima do centro da cidade, foi que descobri que muitas das palavras que falava, pensando dizer tal coisa, infelizmente, significavam outra. E soube da pior maneira.

A professora de ciências enumerava algumas doenças e convidava os alunos a participarem da aula. Vários colegas já haviam se manifestado, quando eu, tolinha, levantei a mão e falei a palavra que julgava ser o nome de uma doença. A gargalhada foi estrondosa. Até a professora riu. Pior é que ninguém me explicou, nem eu ousei perguntar, tamanho o constrangimento. O que ficou muito claro é que aquela palavra não era doença coisa nenhuma.

Chegando em casa, quietinha, fui à estante de livros consultar no dicionário. Na letra "p": "Pênis: órgão sexual masculino" e não a doença da qual, segundo minha mãe, morrera uma prima distante (a prima morreu de apendicite).

Concluí que o caso de meu pai era menos grave, tratei de ensinar à mamãe (inutilmente). Quando ouvia ela dizer às visitas que a prima morrera de "pênis", caso estivesse por perto, corrigia (já morta de vergonha): "Apendicite".

Vai ver, mamãe sabia do que falava. Vai ver, a tal prima morreu mesmo foi de orgasmo.
In: Jornal a Notícia, Anexo, p.3

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Drops

Escrever um bom poema é melhor que gozar.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Bienal do livro (crônica)

São Paulo estava cinza no primeiro dia. Um cinza bonito. Cinza de vida e pessoas desconhecidas passando por mim, de árvores no meio das ruas - vistosas, mais do que os prédios pichados. De pessoas pobres dormindo nas calçadas sob cobertores ou papelões. De vendedores ambulantes. De trabalhadores.

E da Bienal do livro que acontece a cada dois anos. E do hotel com toalhas brancas, piso branco, lençóis brancos e um café da manhã de todas as cores.

O que olhar primeiro na Bienal? Passear primeiro e comprar depois? Dar um rolê e ver todas as novidades e promoções e, somente então, delinear um roteiro de compras? Mas depois as pernas doem, depois dá vontade de os ouvidos descansarem, depois já se está cansado de tanto esbarrar nos outros e desviar daqueles vendedores de revista que te param no corredor.

O importante é não dar importância às coisas sem importância.

Muitos livros são vendidos a preço de banana, mas, diga-se de passagem, livros que valem menos do que uma banana, verdade seja dita. Sim, justamente na literatura infantil, a que deveria ser mais cuidada, vemos muitos livros montados de qualquer jeito, meras reproduções. Se tentarmos descobrir a autoria ou adaptação daquela obra, não encontraremos.

Tenho visto isto por aqui também, nas feiras dos livros: dá-se um vale para as crianças, de um a dois reais, com o qual compra-se justamente aqueles livros, que nem sei se valem um ou dois reais. Não sei até que ponto possam cativar o leitor. Também não sei de que adiantará tantas crianças na feira gigante. Nem até que ponto isto marcará positivamente a memória delas. No entanto, são tentativas de aproximar a criança do livro.

Os adultos se divertem, porém, se irritam e se chateiam um pouco também, principalmente com aqueles vendedores que não sabem responder a nenhuma das perguntas sobre livros que você faz. Cadê os bons profissionais do livro? Coisa rara hoje em dia. Mas eu fui muito paciente, afinal, esta era a minha quarta Bienal do livro. Digamos que tenho uma certa experiência no assunto.

Não me importei de pegar fila pra comprar um lanche, de levar alguns empurrões, outros esbarrões, do barulho, da fila no banheiro... afinal, estava na maior feira de livros do país. Tantas capas lindas, alguns brindes interessantes, algumas bagatelas. Só não havia espaço para sentar e folhear com calma. De repente, você se dá conta: quanta gente gosta de ler!

Pois é, e pra quem gosta, pode virar febre. Presenciei algumas cenas de pessoas eufóricas diante de um lançamento de seu autor preferido. Agarravam-se ao livro apressadas e desconfiadas. Se fosse à mesa e houvesse apenas um doce no prato, talvez você não o pegasse; mas livro pode, pois você sabe, tamanha identificação te torna, digamos, íntima daquele artefato.

Livro, o objeto que nos torna livre. Leve um livro pra casa, não qualquer um, leve aquele que te leva pela mão, pra dentro de um lugar seu e de mais ninguém.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Contudo: verso

Chave

do nunca

mais

jogada

ao mar

de silêncio

(nenhum verso)


Lá longe,

acena

um lenço

(o que se lê no verso?)


Do peito,

emerge

uma

única

açucena

(cujo verso desdobra brancura)


Enquanto isso,

a folha

descansa

sonhando-se

planta

(processo inverso)


Enquanto isso,

folha

flor

lenço

plantam-se

neste poema

feito de

emoção

contida

e silêncio

(correção:

feito de

emoção

contida

no silêncio

do verso)

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Bichos que moram comigo

Ele me olha com olhos espevitados. É o mais novo habitante da casa, por isso a minha surpresa, hoje de manhã, ao arrumar os vasinhos de violeta sobre a mesa da sala e dar de cara com aquela criatura. Por falar em violeta, são quatro vasinhos e, acreditem, o mais insignificante deles, a plantinha mais mirrada, é a única florida. São quatro flores enormes de cor azul-violeta, maiores que a plantinha, exibidas, expansivas. Os dois olhinhos fixam-me com sorriso faceiro.
Os outros habitantes da casa vieram aos poucos. Duas tartarugas chegaram primeiro (ao contrário daquele conto popular). Isso tem dez anos. Naquela época, quando alguém perguntava se morava só, não sei se para variar nas respostas ou brincar, respondia que éramos três. "Pai e mãe?", perguntavam. "Não, chamam-se Luzia e Andaluzia". "Irmãs?". "Não". "Amigas?" "Também não". Antes que me perguntassem novamente, explicava: "Tartarugas". "Nossa, que legal", a pessoa normalmente exclamava. Contudo, antes que se empolgasse, revelava: "Feitas de pano, umas gracinhas".
São duas tartarugas trabalhadeiras, seguram portas. Apesar de que em Brusque as portas quase não saem do lugar. São mais paradas que tartarugas. Brusque é uma cidade inerte, de pouco movimento, quase sóbria, quase firme demais, talvez seja vento que lhe falte. Ou invento.
Nessa altura, você deve estar curioso para saber dos outros moradores. Pois foi lá em Aracaju que comprei a minha arara. Ela não canta. Não sei se isso é defeito ou qualidade. Pratico ioga e meditação, imaginem a confusão. Bem, se ela não canta, as cores cantam por ela, de um vermelho vivo, asas coloridas. Balança na sacada do apartamento. Ali sim o vento circula. É ela que diz suavemente: venha me fazer voar. Uma cordinha desce do seu corpo de madeira, no qual pendurei um punhado de fitas coloridas de Nosso Senhor do Bonfim. Inspirou-me a criar um novo mantra: arara dança, arara dança...
No quarto-biblioteca, a coruja de cordas em tom cru exibe um laço de fita azul. Em nada atrapalha. É a companheira das noites insones, a vigilante de minha escrita solitária. O bicho mais numeroso desta casa, adivinhem? Borboleta. Após lançar meu livro de poemas ("Borboletras: Poemas Curtos que Voam"), passei a ganhar borboletas dos amigos. Livres: na estante de livros, ao lado do Buda, na mesa da sala, duas pousadas na buganvília da sacada. Belas: uma vermelha que levanta o astral de qualquer um; outra, azul-céu.
Ao passar pela sala, deparo-me novamente com as flores exuberantes da violeta raquítica e com os olhinhos espevitados. Observo atentamente aquele serzinho verde de corpo macio. Sorrio. Um sapo feliz saltou dentro do meu dia. E, apesar de sua pequenez, amaciou a vida.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Como se comportar no trabalho (crônica)

Parece fácil se comportar bem no trabalho, mas não é. Quer ver?
1) Toca um telefone celular que não é o seu quando ninguém está por perto.
a) Você não atende e fica ouvindo aquele barulho chato.
b) Você atende e diz que nunca ouviu falar na Mônica.
c) Você joga o celular da janela e diz que foi o vento.
d) Você atende e finge que é a Mônica.
2) Uma colega fala mal de uma amiga sua. Você:
a) Escuta em silêncio.
b) Sai de fininho e pisa no pé da colega.
c) Escuta pra contar à amiga depois.
d) Tropeça de propósito e derrama suco sobre o vestido da colega.
3) Sabendo que seu chefe não estava, você dá uma saidinha para resolver assuntos particulares. Ao voltar, dá de cara com ele. Então:
a) Diz que foi comprar absorvente.
b) Inventa que foi ao dentista e passa o restante do dia com a boca torta.
c) Diz que foi comprar uma arma, pois a melhor defesa é o ataque.
d) Não diz nada. Aponta para a boca, dando a entender que ficou muda.
4) Um colega faz o maior escarcéu ao perceber que alguém surrupiou seu lanche. Você:
a) Fica vermelho que nem pimentão.
b) Comenta maldosamente que viu migalhas de pão na mesa de fulano. Antes de o passarinho entrar pela janela e comer todas, guloso!
c) Diz que faz a dieta dos carboidratos.
d) Diz que não gosta de presunto e queijo.
5) O celular toca de novo e o proprietário, lógico, está longe.
a) Você não atende porque não escuta: esperto que é, usa fones de ouvido.
b) Faz de conta que gosta da música irritante e começa a dançar.
c) Joga o celular no vaso sanitário e dá descarga.
d) Atende e grita feito louco que não entende nada por causa do sinal.
6) O chefe lhe pede para fazer um memorando justo no momento em que você ia fazer um lanche. Você:
a) Inventa que o papel acabou e sai para comprar mais. Enquanto isso, aproveita pra lanchar.
b) Diz que não se usa mais fazer memorando.
c) Diz: faça você mesmo.
d) Pergunta ao chefe: com quantas árvores se faz uma folha?
7) Você pega um subordinado falando mal de você.
a) Faz de conta que não ouviu.
b) Sorri.
c) Faz cara de brabo.
d) Diz que será a última vez.
8) Você ouve seu chefe falar mal de você.
a) Faz de conta que não ouviu.
b) Chora.
c) Diz que será uma de muitas vezes.
d) Concorda com o chefe. Puxa uma cadeira e passa a falar mal de si mesmo.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Serenidade

Alguém disse que tenho isso
alguém que costuma dizer a verdade

Encontrei um novo ofício:
juntar penas ao longo do caminho

As aves (marias) me escolheram
rezo pelas penas que não sinto

sábado, 9 de agosto de 2008

Morte

Morte, quem és?
Não és tão feia quanto pintam
ou és?

Morte, morte
morro de curiosidade
o medo me mata

Oh, morte,
meta na sua cabeça
meta na minha cabeça
(para todo o sempre):
morrer não dói

Morte, me diga:
em Marte também se morre?

Morte, mistério insolúvel

Cutuco a morte, não com vara curta
cutuco com perguntas

A voz que responde
é morte?

segunda-feira, 28 de julho de 2008

O menino e o livro (crônica)

Numa biblioteca, nem todo material é de empréstimo. Dicionário não se empresta, por ser obra de consulta rápida. Não é comum que alguém leia um dicionário de cabo a rabo. Com algumas exceções, claro, citaria o exemplo de Paulo Leminski. Um dicionário não sai de uma biblioteca, ainda, pelo fato de que outra pessoa possa precisar de uma consulta enquanto ele estiver fora.

O mesmo raciocínio leva as bibliotecas a não emprestarem enciclopédias e bibliografias. Além da consulta rápida há outros motivos que levam uma obra a não sair para empréstimo, cito alguns: obras esgotadas da qual a biblioteca disponha de um único exemplar, obras raras, as muito solicitadas para pesquisa (como as didáticas), obras seriadas, coleções etc

No setor infanto-juvenil da biblioteca em que trabalho, todas as obras são de empréstimo, exceto uma. Trata-se de um livrão (livro grande) infantil, medindo cerca de 80 cm de altura, com uma história que nem é famosa, nem tão boa, mas que toca o coração dos pequenos por motivos que não sabemos. O livro, intitulado "O Maior Livro em Relevo Já Publicado" (Richard Scarry), foi comprado há anos de um desses vendedores de porta em porta. Na época, custou algo em torno de R$ 10.

Fato é que as crianças o adoram. E de tanto adorar e manusear, o livro já recebeu algumas restaurações improvisadas na própria biblioteca. Eu mesma já colei alguns pedaços soltos, pois se trata de livro interativo, no qual podem manusear personagens e outras peças.

Quando o compramos, decidimos que o livro seria um chamariz para as crianças in loco, portanto, não seria de empréstimo. Talvez por isso o livro ainda exista. Livros infantis normalmente têm durabilidade menor que os de adulto, mas, o que nos deixa feliz é proporcionar a aproximação entre a criança e a viagem da leitura.

Presenciei algumas cenas de crianças chegando ao balcão de empréstimo querendo levar o "livrão". Ao explicarmos que não era permitido, elas se conformavam e acabavam pegando outro. Semana passada, aconteceu algo inusitado.

Por volta das quatro da tarde notei pai e filho num impasse: o filho corria na frente levando nos braços algo quase maior que ele, o pai atrás, tentava dissuadi-lo. Ao me aproximar percebi um menino de não mais que três anos, já com duas lágrimas na face, abraçado ao objeto.

- O que foi? Perguntei.

O pai explicou:

- Ele quer, por toda força, levar este livro que não é de empréstimo.

Disfarcei a alegria que a história me causava e conversei com o garotinho. Disse que também achava o livro muito bonito e que o compreendia. Mas expliquei que, mais tarde, outro menino e mais outro, viriam à biblioteca e ficariam tristes ao constatar que o livro não estava ali.

Após me ouvir com olhar compenetrado, permitiu que o pai guardasse o imenso objeto. Ao sair da biblioteca, estava alegre e saltitante, como se nada acontecera.

Talvez devêssemos comprar outro exemplar. Claro, desde que os pais se comprometam a ajudar no transporte. Afinal, o livro é grande demais para que os braços pequenos o abracem, durante o longo percurso entre a biblioteca e as casas.

sábado, 26 de julho de 2008

Consulta ao I Ching

Dor do mundo imundo
impõe-se

Infortúnio
nenhum jasmim

Para lago algum aponta
a ponta da seta
nenhuma seita

Trocaram as letras da graça
escritas na porta do templo

A Imperatriz do amor
se recolhe em pétalas
e bebe do próprio orvalho

Nenhuma nuvem
uma garça floresce no céu
graças a Deus

segunda-feira, 21 de julho de 2008

São Cristóvão (crônica)

Dia 25 é dia de São Cristóvão, o protetor dos viajantes. A procissão, seguida de festa, acontece no domingo próximo à data comemorativa. Uma grande festa religiosa. Geralmente frio.

Mamãe nos agasalhava. Apesar da cerração da manhã, sentávamo-nos em frente de casa para esperar a procissão anunciada por foguetes. Sabíamos que chegaria e passaria em frente ao portão. Primeiro o caminhão trazendo o santo com o menino ao colo, geralmente adornado de flores e rodeado de anjos. Em seguida, os carros em fila.

Para cada pessoa havia um sentido de estar ali. Alguns procuravam por parentes, outros apreciavam a beleza dos carros. Havia quem se admirasse de o santo não cair daquela altura e até quem, alheia a tudo, brincasse de boneca.

Certo é que não havia outro assunto naquele dia. Certo, também, é que naquela família ninguém acompanhava a procissão, pois não havia carro nem motorista, o pai tinha problema "nas vistas". Apreciava do portão com os filhos aquele momento "tão bonito", conforme dizia.

Era comum que algum parente os visitasse durante o domingo festivo. Se fosse de tarde, servia-se licor de figo com docinhos de araruta; se fosse almoço, galinha assada em forno a lenha, acompanhada de gasosa cor-de-rosa. Os parentes demonstravam alegria sincera. Saudade nos olhos, nos abraços e nas suas conversas.

Quando o progresso chegou por aquelas bandas, construíram uma rua nova e mais larga, cortaram o morro e mudaram a geografia. No primeiro ano, os moradores sentaram-se em frente às casas e esperaram pela procissão. Ouviram os foguetes e o barulho dos carros se aproximar e se afastar, sem por lá passar. Entraram em suas casas cabisbaixos e se ocuparam com os afazeres. Até Deus se curvara ao progresso.

Com a multiplicação da população e, conseqüentemente, dos carros, foi bom mesmo que a procissão deixasse de passar naquela pequena rua bucólica. Pois as pessoas bebiam na festa regada a churrasco e cerveja. Bebida e volante, até São Cristóvão sabe, não combinam.

De maneira que, naquela redondeza, passou a se dizer que prudente era não sair de casa, pois havia muita gente a dirigir bêbada. Melhor assim, quem quisesse subir o morro para ver a procissão passar, tudo bem. Podia levar uma cadeirinha ou toalha felpuda e sentar na beira da "federal". Até hoje tem quem faz isso. Mas já não há mais tanta graça. Nem em ver os carros passarem, nem em encontrar parentes, nem em ver o santo, muito menos em ouvir foguetes.

Revelo um segredo que escondi de todos. Aquele santo, ao passar, dizia algo que não entendia, sussurrava em meus ouvidos, mas o barulho dos carros e dos foguetes não me deixava ouvir.

Hoje eu sei o que ele me dizia: "Vai, Suzana, ser escritora na vida". Daí a importância daquele dia. Sabia sem o saber: dia 25 é o dia do escritor!

Ler também aqui

terça-feira, 15 de julho de 2008

Fluxo-poema

Transpassar para a literatura o momento mágico encontrado no silêncio.

Mergulhar no silêncio dos troncos das árvores.

Cobrir-se de seiva e folhar-se de tudo que te cerca.

Apesar de saber que nada te cerca.

Tu cercas as coisas.

Tu fazes com que estejam onde não estão.

Tu abarcas as coisas e inventas cercas e importâncias para elas.

Tu és a cerca, tu, o vaso, tu, a cerca que cerca a si mesmo.

Mergulhas na mata úmida de teu ser-bosque e buscas a leveza de quem não busca.

Um beija-flor bebe da água que teu olhar bebe feito um bebê embevecido.

Teus olhos miram no veludo das pedras veladas na água.

A cascata descasca tuas camadas de casca.

Caminhas com tua bota por sobre as folhas secas e as possíveis e impossíveis formigas.

Acima da sola, teu pé coberto de pele e linhas que ninguém lê.

Mais acima, a linha dos olhos.

As linhas que nos cercam.

As linhas que contornam folhas.

As linhas macias das nuvens.

As linhas das águas que evaporam.

As linhas escritas que nunca chegam a ser o que se queria que fossem.

Escrever é uma linha.

Uma cerca entre o dito e o não dito.

Escrever é um destino.

Escrever é inventar sentidos.

Escrever é viver além da cerca.

Escrever é o plano onde os planos se bifurcam.

Escrever é solitário.

Escrever é solidário.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Anotações de moda (crônica)

Até hoje não entendo por que algumas coisas estão na moda e outras não.

Usar sombrinha durante os dias de sol, por exemplo. Já tive vontade, mas não tive coragem. Vejo pessoas de mais idade caminhando no horário do sol quente com a sombrinha aberta, vontade de fazer igual, mas não consigo. Soa tão ridículo para a maioria dos mortais. Sentimental que sou, perceberia o ridículo nos olhos dos outros e meu coração não agüentaria.

Uma moda dessas nos livraria do excesso de sol na pele, seria uma proteção a mais, sem falar no frescor e colorido. Por falar em sombrinha, ganhei uma de uma irmã que viajou ao Paraguai, isso tem uns 20 anos. Fechada, tinha o tamanho da palma da mão. De lona em tom ferrugem, apresentava desenhos de pássaros em revoada. Não deu outra. No primeiro vento, a sombrinha foi voar com seus passarinhos, deixando-me sozinha no meio da ponte, com o cabo na mão.

Outra moda interessante seria a de usar meias de pares diferentes. Não sei onde perco minhas meias. Fica um pé sozinho. Como não tem furo nem nada, sinto pena de jogar fora. O que fazer? Usar um pé com meia e outro sem não dá. Se viesse uma moda dessas, de usar em cada pé uma meia de par diferente, seria ótimo.

Quando me dei conta de que estava vestindo meias de pares diferentes, uma preta com desenho de borboletas e outra listrada em tons de rosa, já era tarde. Estava no trabalho e dependia de ônibus. Passei o dia inteiro me sentindo desconfortável. A nítida impressão de que todos me olhavam (pura ilusão, não sobra tempo de olhar as meias das pessoas... ou sobra?).

Cartas escritas a mão. Eu sei que é um sonho meio tolo. Ninguém vai deixar de escrever no computador, no qual há a possibilidade de correção imediata e envio instantâneo. Porém, sinto falta da parte tátil das cartas, do farfalhar provocado pela fineza das folhas, dos selos feitos com arte colados nos envelopes e de ver a caligrafia das pessoas, ou o jeito de assinar, por vezes rabisco ou desenho acompanhando o gesto.

Logo eu que escrevo meus textos diretamente no computador tenho vivido uma onda nova (ou seria velha?): paixão por caligrafia, pelo gesto de pegar um lápis ou caneta e escrever do próprio punho. Não mais como necessidade de trabalho e sim como um ritual. Não é a mesma coisa ver o texto criar forma no visor ou vê-lo delinear-se sobre o papel. Os caracteres se parecem com pequenos pássaros no céu de luz branca, quando formando grupos de palavras: revoadas.

Por falar em palavras, tem uma moda que persiste há tempo e que, na minha opinião de leiga, está fora de moda. Acho que esqueceram de avisar os estilistas. É o tal do "inglês" nas roupas. Use o português, estilista. Língua tão bonita essa nossa.

Aviso: se você encontrar nos próximos dias uma moça com meias de pares diferentes nos pés, usando sombrinha em pleno sol e caminhando apressada para pegar o correio aberto, talvez seja eu. Agora, se em vez de uma pessoa nessas condições, você encontrar centenas, pode crer, algum estilista me leu.
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quarta-feira, 9 de julho de 2008

Ilustração de livros

Pelos Jardins Boboli: reflexões sobre a arte de ilustrar livros para crianças e jovens, é um livro feito com carinho. Bonito de olhar e folhear. Índice remissivo, sumário, notas, tudo nos conformes. Bordas atraentes. O conteúdo é divino. Rui de Oliveira é o Deus da ilustração. Deuses modernos são generosos. Rui não guarda para si o conhecimento, distribui. Fica sempre um pouco de perfume nas mãos que oferecem rosas. Mãos de tinta e perfume, mãos de Rui.


Outras informações aqui

terça-feira, 8 de julho de 2008

Metamorfose

Cedo ou tarde
a face de seda
estará drapeada

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Modernos (crônica)

Aconteceria um casamento na família. Cerimônia no religioso. Sabemos que hoje em dia quando se diz que alguém vai casar pode significar se juntar, morar na mesma casa ou apenas casar no civil e não na igreja.
Abro aqui um parágrafo. Não é assim tão fácil ter cem por cento de certeza que esta ou aquela pessoa é a pessoa certa. Como saber? Ora, um apaixonado, enquanto estiver apaixonado, tem a certeza do amor. Dizem os especialistas que paixão tem prazo de validade. Algumas duram mais, outras menos, mas há de ter dia certo para acabar.
Abro outro parágrafo. Amor, dizem, é mais duradouro e mais sábio. Amor é equilíbrio, reflexão. Por isso, amor é menos quente, menos impulso, menos emoção, menos precipitação. Amor é rio, paixão é mar. Amor é o que se vê nos olhos daqueles que compartilharam uma vida inteira. Amor é o que existiu entre Jorge Amado e Zélia (amor e zelo).
Além da paixão e do amor há outras coisas que seguram um casamento ou uma união entre duas pessoas. A promessa feita diante de um padre, o compromisso assumido perante família e sociedade, os bens que teriam de ser divididos em caso de separação, e os filhos, claro. Alguns casais vivem no mar da dúvida, mas tocam o barco adiante, muitas vezes apenas um rema, o outro apenas se deixa levar. Pior é quando remam para direções contrárias.
Luciano e Joice casaram de trás pra frente. Explico: Com alguns meses de namoro ela engravidou. Por conta disso e da paixão que sentiam, juntaram os trapos (modo de dizer), moraram alguns meses num quarto da casa da mãe dele enquanto era construída a casa no terreno dos fundos, que ficou pronta antes mesmo do nascimento da menina. Só então, casaram no civil.
Passados sete anos de convivência (número mágico) eis que anunciam o casamento no religioso. Sete anos, tempo suficiente para certezas. A filha levaria as alianças. As flores seriam brancas, o vestido da noiva prateado, o sorriso do noivo sagrado. A mãe octogenária dispensou a bengala, levou o filho ao altar e foi colocada numa das cadeiras laterais, ao lado da menina que assistia ao casamento dos pais.
Casamento no religioso é uma cerimônia tocante. Quase um teatro. Mas dentro da gente passa um filme de emoções. Os presentes nos tocam e os ausentes nos visitam. O jeito é não passar nenhuma maquiagem nos olhos. Disfarçar. Em último caso foi um cisco ou alergia causada pelo mofo da igreja.
Quando termina voltamos à vida real. Mas aí vem a festa no clube, comida e bebida à vontade, dança, alegria. A menina tira o vestido branco. A mãe zelosa lhe veste a roupa de brincar. As crianças se esquecem no parque do clube. Os adultos relembram da infância, de como eram felizes. De certa forma, o espírito jovem desperta, o tempo se apaga e ninguém mais sabe quantos anos tem.
A noiva joga o buquê. Alguém o agarra: marcada para casar. Assim como tantas outras fizeram antes. Mães, tias, avós. Ou não.

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sábado, 5 de julho de 2008

Aniversário

(presente - sugestões):

um gato de feltro
tal o da infância.
era verde, não miava
não comia, nem chorava

uma roupa nova
costurada pela irmã
que só se exprimia
em língua de pano
ou
uma roupa velha
feita da mais pura lã
de ovelha

uma bala de hortelã
um jogo de canetinhas
um livro novo
caderno de desenho
ou caligrafia

pé de goiaba
ou abacate

uma caixa vazia
cheia de mistérios

abracadabra

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Círculo de leitura
Gosto da idéia de um círculo de leitura. Círculo-aconchego. O círculo dá idéia de infinito, símbolo utilizado por Guimarães Rosa ao dar (ou não dar) por encerrada a obra "Grande sertão: veredas". Alguém pegará na outra ponta do fio e dará continuidade, tal diz João Cabral, no poema "Tecendo a manhã" (um galo sozinho não tece a manhã: ele precisará sempre de outros galos...).
O Círculo de Leitura da EDUFSC me convidou para falar um pouco sobre meu encontro com a leitura, nesta quinta-feira, às 17 horas.
Ler matéria e entrevista aqui

A vida é pra valer (crônica)

Um ano tem 365 dias, aprendi nas aulas de geografia. Meio ano, então, haverá de ter a metade disso (utilizo um pouco do que aprendi nas aulas de matemática): 182 dias (aproximadamente).

Há 182 dias o ano de 2008 começou. No primeiro dia de 2008 fez sol e havia restos de oferenda na areia da praia. A praia estava cheia no período da tarde. A manhã estava mais para pássaros.

Há 182 dias, João fez sua lista de metas para o ano de 2008. Mas, hoje, João nem se lembra mais do que anotou naquela folha de papel. E se João fosse procurar pela folha, não a encontraria, pois numa certa tarde azul, sua filha pequena fez dela um barquinho que naufragou numa bacia de águas tranqüilas.

Cecília, mais cuidadosa do que João, anotou seus planos na agenda bonita de capa dourada, presente do namorado. Os planos de Cecília ocuparam a primeira semana da agenda. Passados seis meses, ela finalmente se dá conta de que, ao jogar fora a agenda quando findou o namoro, jogou fora seus planos.

Pedro não fez nenhuma anotação, pediu saúde, que o resto a gente leva, com saúde tudo se ajeita. Pedro tem 80. Vestiu-se de branco no primeiro dia do ano, passeou, cumprimentou os vizinhos, comeu carne suína (mas não liga muito pra essas superstições). Pedro é uma rocha.

Rosana, neste exato momento, pára de ler a crônica e tenta lembrar dos planos que fez. Busca na memória, recorda que anotou num dos cadernos. Vai à estante da sala, procura entre a lista telefônica e os poucos livros. Lá vai Rosana consultar, avaliar. Ainda bem que Rosana costuma ler jornais e crônicas.

Bem longe daqui está Teresa. Teresa toma o café da manhã e se dá conta de que estamos no dia 30 de junho e de como o ano correu, parece uma lebre. Teresa se sente uma tartaruga. Não faz mal. Teresa vai cuidar das rosas e das gérberas no jardim. Ah, a cerejeira japonesa está florida. Não, não dá frutos, apenas flores. Teresa não se casou, não teve filhos. Apenas flores.

O nome do barco é "Esperança". Volta com pouco peixe. O pescador pesca por prazer. Um aqui, outro ali. Tem a vida ganha, porém módica. Os filhos todos casados. Foi com "Esperança" que ele colocou comida no prato da família. O plano é pescar, descansar e brincar com os netos.

Otávio, neste exato momento, calcula quanto conseguiu juntar de dinheiro. Acha pouco. Pensa num jeito de juntar mais no segundo semestre. Investe no agronegócio. Desmatou, vendeu madeira, criou gado, lucrou. O neto de Otávio não sabe falar direito, chama o vovô de "Otário".

A cronista não fez planos para 2008. Mas anotou na primeira página de sua agenda dois versos de Vinicius de Moraes: "A vida é pra valer/ A vida é pra levar".
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terça-feira, 24 de junho de 2008

O arqueiro

pálpebra semicerrada
no papel alvo

tiro certeiro

o poeta flecha-se
no papel fechado

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Poesia no youtube

Das casas

vídeo produzido pelo artista plástico Tadeu Bittencourt em parceria com o poeta Douglas Zunino.

Alumbrar-se aqui

O segredo (crônica)

Constroem um edifício bem do lado de onde moro. Aquela construção vertical, estruturada em ferro e cimento. Antes de instalar um monumento desses para resguardar humanos, é preciso fazer o fundamento. O proprietário ou construtor teve a infeliz idéia de fazer o tal fundamento aos domingos, vejam só, que coisa mais sem fundamento, ora, domingo é o dia mais silencioso por aqui, o dia em que nós, trabalhadores, costumávamos dormir até mais tarde.

Tenho acordado com barulho de martelo, serra, conversas... Esse pessoal que trabalha em construção começa cedo. Isso tem me deixado de mau humor. E o que é pior, uma construção desse porte leva tempo. Por enquanto, o barulho de martelo vem da construção do barraco de madeira que constroem para servir de morada aos peões da obra.

Já senti, várias vezes, vontade de abrir a janela e gritar: "Ei, parem de martelar". Ou de deixar uma carta pedindo por silêncio. Mas tudo isso seria inútil. Notei que estão loucos pra derrubar uma ou outra palmeira esquecida no entorno do terreno e não quero revanche. Sinto que meus dias por aqui estão contados, eu e o bem-te-vi andamos desolados.

Saudade do tempo da poesia de Zé Geraldo, quando entoávamos a música do trabalhador que construía e não podia usufruir: "Tá vendo aquele edifício, moço, ajudei a levantar". Tudo leva a crer que os peões de hoje pouco se importam se estão serrando uma árvore ou poluindo. Só se fala em trabalho. Dá-se graças a Deus quando se tem. Foi-se o tempo da luta de classes. É normal que os ricos tenham muito e os pobres quase nada. Afinal, apenas aqueles conhecem o verdadeiro segredo.

Você deve estar se perguntando: qual segredo? São tantos: o segredo da exploração, o segredo da politicagem, o segredo da bandidagem, o segredo da sonegação, o segredo de casar bem, o segredo de juntar vintém, o segredo da bolsa e, é claro, o segredo dos números que serão premiados na mega-sena ou concurso similar.

Já dizia o profeta: é mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do que um pobre descobrir o segredo.

Nenhuma poesia. Meus olhos vêem insensatez. Meus olhos vêem as lindas árvores da Amazônia sendo derrubadas por peões que enfrentam os profissionais do Ibama pra cumprirem as ordens do patrão. Este, nem sabe mais o que fazer com tanto dinheiro (a ganância é um poço sem fundo). Talvez sirva, entre outras coisas, para pagar uma defesa cara ou a compra de um júri, tal dizem ter acontecido na absolvição do mandante do crime da Irmã Dorothy (outro segredo).

Serra e martelo atravessam a manhã com o paradoxo da construção: destruição.
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terça-feira, 17 de junho de 2008

Céu de silêncio

Imponente
a ave nos surpreende
cheia de penas
branco
e azul

Nenhum grasnado
tudo ao seu redor
pede silêncio

Condor, gavião, águia?
não sabemos teu nome

Ave-maria do céu
protegei as rapinas
do olhar de rapina do homem

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Carta para Adriana Lisboa

Adriana,

Em Brusque tudo igual. Isso não é uma boa notícia. Quer dizer que o rio continua sendo poluído, os morros desmatados e transformados em loteamentos, e a nítida impressão de que as pessoas não estão nem aí, ou angustiadas em seu canto, feito eu.

Já te falei numa outra carta que, de certa forma, não simpatizei contigo num primeiro momento, foi durante o programa de entrevista da TV Educativa (agora TV Brasil) chamado "O Mundo da Literatura".

O jornalista fazia umas perguntas meio óbvias e você dava respostas completamente diferentes, quase denotando arrogância. Você, tão jovem, falando daquele jeito... Na verdade, era o entrevistador que não dava conta das tuas respostas, ou não te conhecia. Enfim, não foi este primeiro momento que me motivou a te procurar. Além disso, são tantos os autores e títulos publicados nacionais e internacionais que nos chegam.
Qual escolher?

Durante a leitura do "Rascunho" (jornal literário de Curitiba), topei com você de novo, no artigo "Como se constrói um personagem", de Antônio Torres. Desta vez, fui ao Google pesquisar, digitei "Adriana Lisboa" e encontrei teu site. Tudo me encantou, amor à primeira vista. Mas ali havia apenas resumos dos teus livros, as capas, os prêmios e uma espécie de resenha biográfica.

Em Brusque há apenas três livrarias, sendo que duas delas são papelarias. Foi na livraria que vende apenas livros que encontrei teu "Rakushisha". Confesso que não entrei lá à tua procura, minha intenção era comprar um presente para um amigo que aniversariava, mas dei de cara com teu livro, lindo, capa ao meu gosto.

Acabei não comprando naquele momento o presente do meu amigo e me dei de presente teu livro. Iniciei a leitura na mesma noite. Pressa e ao mesmo tempo receio. O paradoxo da leitura de um livro bom: querer e não querer chegar ao fim.

Quem lê um quer ler mais. "Um beijo de Colombina" foi comprado numa das minhas idas a Floripa, durante as férias. Novamente a sensação de não conseguir desgrudar, levantava o rosto apenas para um respiro mais profundo, vontade de entrar, mergulhar no mar, nadar. Nessa época já conhecia teu blog, que por sinal é ótimo, pois com o mesmo jeito aparentemente displicente com que narras teus livros, discorres sobre temas os mais variados.

Foi na Feira do Livro de Joinville (abril) que o "Língua de Trapos" me acenou de um estande. Rui de Oliveira, numa das poucas mensagens que trocamos, comentou que ilustrara um livro teu de poesia (classificado pela Rocco como livro infantil). Foi meu presente de fim de feira, me acompanhou na rodoviária solitária. Enquanto o ônibus deslizava veloz a Brusque, eu e minha bonequinha de trapos, abraçadas, olhávamos as estrelas minúsculas luzirem no céu.

Não tenho pressa, cada livro teu me chega de uma forma especial. Não quero que acabem, gosto de saber que falta ler alguns. Tento me equilibrar entre o desejo de ler todos e o de guardar um pouco para saborear mais tarde, feito um doce raro.

Abraço e sol!

Suzana

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terça-feira, 10 de junho de 2008

Receita de amor

Receita para paixão virar amor?
não sei

Conheço a receita de pão:
água, farinha, sal e fermento:
junta, mexe, descansa
põe na forma
deixa crescer.
Cozinha-se ao calor do forno

Na primeira vez que veio,
ela disse: só tem pão
ele não se importou,
se fartou

Depois de casados
ele elogiava
o cheiro de pão que vinha do fogão
e a puxava pela mão...
Em seguida, famintos
tomavam café com pão

Vai ver, a receita de pão
era de amor

In: Município dia-a-dia, Caderno Mais: Amor, 09/06/2008

terça-feira, 3 de junho de 2008

Alegria (crônica)

Alguns domingos são muito chatos, não aquele.

Tudo começou no sábado. Uma estrela despencou do céu bem diante dos seus olhos. Um facho de luz se consumiu no infinito. Sentia-se a escolhida para aquela visão. Quem mais viu? Passou o domingo perguntando a todos que encontrava. Ninguém. Somente ela olhou para o infinito no exato momento em que a estrela escrevia-se no céu, consumia-se e ardia de emoção na moça que a olhava estupefata, de boca aberta, sem saber o que dizer. Minutos depois conseguiu recuperar o equilíbrio e ter a boa idéia de fazer um pedido: saúde, amor, alegria, dinheiro, sucesso?

Para ser mais precisa, tudo começou antes do sábado, na sexta. O dia estava lindo, a casa limpa, o vaso de laço-de-cetim com botões se preparando para abrir, o pé de buganvília com cachos em flor, veranico, céu azul, brisa, comida feita em casa, ouvindo Yes, vinho. Tudo perfeito. Um livro bom lido aos poucos em vários ambientes da casa. Aproveitamento dos espaços, dos silêncios. Tarde da noite, escreveu um conto diferente, ousava numa nova técnica: uma estrela cadente amarrava o desfecho do texto.

O feriado foi na quinta, dia do Corpo de Cristo, mas que seu corpo estava absolutamente cansado, um dia dado a não fazer nada que não fosse estritamente necessário, largou-se lendo pela casa, comendo (saco vazio não pára em pé). Um privilégio de poucos, fazer exatamente o que der na telha num dia hipotético. Até estranhou. Sentiu um certo desconforto no início, quase que inventa obrigações, acostumada às exigências da modernidade, ao peso da cruz. A rede foi ocupada. De lá avistou um bando de aves cruzar em direção ao norte pouco antes de anoitecer. A lua subiu de ponta apagada no céu.

Era para ser um domingo trivial. A cunhada iria ao sítio buscar telas que o irmão havia pintado. Lá havia tangerinas e sol, deu para sentar no chão forrado de folhas e comer uma, duas, quantas quisesse. Depois houve tempo de olhar o córrego deslizar sobre as pedras, ouvir o canto dos pássaros, olhar e sentir as árvores que quase atingem o céu, jogar conversa fora com a cunhada e a prima, quando algo lhes atravessa a tarde e pousa numa árvore próxima. Uma ave, não qualquer ave, um falcão branco de asas azuis, uma águia rara, um gavião? Não sabiam. Bocas comovidas. Tenta se aproximar. Caminha descalça pelo bosque, com cuidado para não afugentar a surpresa. Observa aquele ser outro: ave, vôo, beleza. Então ouve o barulhinho que saía do chão, um farfalhar contínuo e nervoso: formigas, milhares delas migrando sobre o tapete de outono. Milhares de vida ao seu redor. Nenhum carro, nenhum motor.

Na casa da mãe, durante o café da tarde:
- Mãe - diz a filha -, vi um sapo ontem à noite. Um sapo grande...
- É o meu sapo, interrompe a mãe.
Todos se olham embasbacados.
- É, ele está comigo há anos...
Todos gargalham na mesa do café.
- O sapo que viste é gordo, malhado e grande? – pergunta à filha.
- Sim, responde.
- Eu falei. È o meu sapo. Mora no bueiro de dia e passeia de noite pelo quintal... De que estão rindo?

Riam porque estavam felizes. Era domingo. E havia sobrado um sapo velho.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Bons fluidos

Uma grata surpresa descobrir que meu blog está na lista dos dez (Blogs: estes são dez) da revista do bem-estar Bons fluidos (edição de junho, p. 21). Não faço a menor idéia do método de clicagem utilizado para chegarem aqui, na pequena Brusque. O que sei é que no sábado à noite vi uma estrela cadente.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Milagre das folhas


farfalhavam

milhares de formigas


farfolhavam

formigrando de lugar

terça-feira, 20 de maio de 2008

Pessoa-árvore

Para Ítalo

Tantos nomes inventou
sobraram dois verdadeiros
Antonio e Nogueira

Enquanto Pessoa escrevia
poemas
Antonio sonhava
na sombra da nogueira

terça-feira, 13 de maio de 2008

Encontro

O guizo no pé do ser que
corre

escorre profundezas
dele

quando o som do
guizo

ecoa pela rua
escura

quando o sem
juízo

corre a nua
pele

já é sol
ele

beija
ela

tlim

terça-feira, 6 de maio de 2008

Vento sul

Vento sul
ventando azul na Ilha
vento gelo
vento armadilha

Vento lamento
alivia nossos males
leva além dos mares
tudo, tudo que calamos

Vento caramujo
(eu sei)
guardas
no teu uivo
o mal que o mundo fez

terça-feira, 22 de abril de 2008

Met amor fose

Quando o amor morreu
plantei duas árvores

isso faz tempo

olhando para o pomar
ninguém diz, nem o vento
que ao terminar por dentro
o amor cresceu vermelho
pendurado nas frutas

In: Coletânea Sinergia

domingo, 20 de abril de 2008

Poema de domingo

Autor: Ademir Demarchi


Diz-se
quando todos os pássaros voam
ao mesmo tempo, sem razão
apenas para o espaço
voam
Diz-se
quando também o amante diz
e as labaredas lambem
bis
Diz-se
na ausência das palavras
e na inexistência de interlocutores
Diz-se
o tempo todo
e na quimera de nada se ter a dizer
Diz-se sibilinamente
e com volúpia
a utopia prazerosa de dizer
* *
*
Ademir Demarchi nasceu em Maringá (PR) e vive em Campinas (SP). Editor da revista Babel, tem vários livros publicados. Seu livro mais recente é Os mortos na sala de jantar, pela editora Realejo.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Na minha cidade não tem gaivota
na minha cidade tem pensamento
que vai e volta (moro num vale)

nem sempre o pensamento volta
para seu lugar de origem

por isso, de repente
alguém desta cidade te surpreende

e voa

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Carta de Clarice*

Querida Suzana,

Desculpe a demora em responder. A folha chegou inteira e bela. Agradeço o convite para o licor de figo e para o doce de polvilho. Devem ser deliciosos.

Estive te observando enquanto lias as minhas cartas. Confesso que, de início, fiquei um pouco chateada. Não esperava ver minha correspondência privada publicada em livro, disponibilizada ao público. Qual o direito de um morto? Mudei de opinião ao perceber que os leitores aprendem lendo minhas cartas, inclusive você. Observei que anotas a lápis nos cantos das cartas quando tratam dos meus escritos ou traduções. Isso compensa o pesar.

Também notei que não sabias muito sobre a minha vida e que, de início, a leitura não engrenou, você iniciou umas três vezes e largou, contudo, na semana passada, voltavas do trabalho pensando no livro, ansiosa para retomar a leitura e assim compor um mosaico da Clarice escritora. Detalhe importante: havia publicado apenas um livro quando eu e Maury fomos morar na Europa. Tempos difíceis, o mundo ainda em guerra. Minha tristeza é visível. Nem tu imaginavas que a minha carreira de escritora houvesse sido tão difícil, não sabias da minha ansiedade e angústia (e do meu cansaço) em dar um livro por terminado, antes que o mesmo me matasse.

Agora você sabe um pouco mais sobre mim. Sabe, por exemplo, da dificuldade para encontrar uma editora no Brasil que publicasse meus livros, mesmo tendo por amigos Rubem Braga, Fernando Sabino e Érico Veríssimo. De como vibrei quando a revista de uma universidade norte-americana publicou meu conto "Amor". De como me chateava quando as traduções dos meus textos não eram bem feitas. E, principalmente, como me chateavam os jantares que organizava.

Você deve ter notado que praticamente todas as cartas tecem algum comentário sobre o meu trabalho, ora pedindo uma opinião à Tânia (irmã), ora reclamando da resposta da editora que não vinha, ou do pagamento. Assim como você deve ter percebido que a partir do nascimento de Pedro fiquei mais alegrinha, não tive mais aquelas crises de solidão. Se bem que as cartas, naturalmente, rarearam. Depois nasceu Paulinho. Nessa época já morava em Washington. Os filhos, sem dúvida, deram novo sentido à minha vida, trouxeram cor à frieza que é morar no exterior, longe das pessoas queridas.

Em nenhum momento cogitei não ser escritora. Isso você percebeu. Assim como você deve ter observado que havia um grande amor entre mim e minhas queridas irmãs, formávamos o trio Lispector, daí o título do livro publicado pela Rocco: "Minhas Queridas". Uma edição bem cuidada, sem dúvida, mas eu preferiria que as notas estivessem ao pé de página e não ao final do livro, dá um certo trabalho durante a leitura, é pau, você não acha?

Soube que tua mãe ganhou um cachorro. Coitadinho, vocês precisam definir um nome para ele, ela o chama de Teté, você o chama de Totó, Luísa de Pitoco... Eu o chamaria de Dilermando.

Seja feliz, seja alegre, Deus te abençoe.

Clarice

* Resposta fictícia de Clarice Lispector à carta que escrevi para a promoção "Minhas Queridas", da editora Rocco.