segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Pra não dizer que não falei de livros
(Colóquio para alunos do Ensino Médio – SENAI)

Na Bíblia tem uma frase que diz mais ou menos o seguinte, diga-me com quem andas que eu te direi quem és. Passando para o universo literário, eu me pergunto e lhes pergunto: com quem andamos, quais os livros que lemos ao longo do caminho, desde nossa infância até o atual momento? Volto no tempo e lembro-me de minha primeira experiência de leitura guardada na memória, quando minha mãe lia a história sagrada numa noite de trovoada, intercalada com outras, como a de João e Maria (Mamãe adorava contar a história de João e Maria, mas nunca nos contava do mesmo jeito, pois inventava). Depois nós contávamos historinhas uns aos outros. Até que chegou a escola e as primeiras linhas lidas. O gato gosta da bola, o gato se enrola feito uma bola e rola. Os contos de fadas. Leitura em família, com a mãe, ou o pai, ou um irmão. Leitura com amigos. Leituras solitárias com a porta do quarto trancada. Leitura de gibis. Empréstimo de livros entre amigos. A possibilidade de falar sobre. Rindo sozinho durante a leitura engraçada de uma passagem do livro. Gargalhando no ônibus, no sofá e até no banheiro. Alguns livros nos fazem chorar. Viramos o rosto no travesseiro e choramos copiosamente. Livros com dedicatória. Para meu irmão João, com carinho e admiração. Para Luísa, pela passagem de sua primeira comunhão. Livros que damos de presente, qual escolher? Um universo para outro universo. O dinheiro que levamos dobradinho no bolso para presentear a nós mesmos. O dedo passando de-va-garinho sobre as capas, a ilustração, o tamanho das letras, o nome do autor que já se tornou nosso amigo, confidente. Livros que nos convidam a anotar coisinhas ou sublinhar passagens (sempre a lápis), livros que esquecemos de devolver a um amigo e cada vez que olhamos nos lembramos do amigo e de nosso esquecimento, livros que emprestamos sabendo que estamos dando. Livros das bibliotecas, com etiquetas na lombada, carimbo e carinho da bibliotecária. Livro que já passou por muitas mãos e olhos, quantas vezes um livro da biblioteca é lido, uma, dez, 100, ou nenhuma? Livro guardado. Livro do sebo, com cheiro de usado, mas com o mesmo texto de um novo, o mesmo conteúdo, por um preço bom. Livro que não emprestamos de jeito nenhum. Livros que passeiam conosco. Na praia, no banco, no intervalo do almoço. Livro em branco com versos espaçados. Livro com folha cheia de letras miúdas. Livro grosso. Livro fino. Livro que se leva uma vida inteira para ler. Livro lido em uma hora. Livro virtual. Livro normal. Se empilhasse todos os livros que lemos um sobre os outros, daria para atingir a altura de uma xícara, de uma mesa, de uma porta? Livro passado de pai para filho. Livro juntado do lixo. Livro atirado no lixo. Livro de ação, aventura, poesia, sexo, romance, livro ao nosso alcance, livro difícil, livro técnico, livro que o autor levou a vida inteira para escrever, livro de auto-ajuda, livro fácil. Quando lemos? Antes de dormir, aos sábados, aos domingos? Deitados, sentados? Com o livro ao colo ou apoiado sobre a mesa? Alguns apóiam sobre o travesseiro. Ler na cama é bom. Um poema antes de dormir. Um beijo depois.

Livros e leitura (crônica)

Há muito, muito tempo, no Dia das Crianças, eu e minha irmã fomos presenteadas com um pacote comprido e fino. Eram livros. “Rique-Roque, o Ratinho Sonhador”, de Maria Thereza Cunha de Giacomo, foi meu primeiro livro. Afeiçoei-me a ele instantaneamente. Adorei a história daquele pobre ratinho sonhador com fome de lua, ilustrado por Darcy Penteado. Mais tarde, soube que se tratava de um excelente ilustrador e de uma escritora premiada (o primeiro livro a gente nunca esquece).

Não sei como surgiu meu gosto pela leitura. Venho de uma família grande (13 irmãos). Meu pai cursou somente o primário e minha mãe estudou apenas um ano. Mamãe dizia que se o pai dela a deixasse estudar mais um ano, seria professora. Devido à religiosidade fervorosa de meus pais, as primeiras leituras que ouvi em torno de mim foram das Escrituras e do livro de terço. Penso que as orações e as repetições do terço me prepararam para a cadência dos versos.

Desde bem pequena ia à biblioteca do Sesi pegar livros emprestados (ficava a mais ou menos dois quilômetros de casa), às vezes ia a pé, noutras de bicicleta. É provável que tenha saboreado todos os livros de contos de fadas daquele pequeno acervo. Era um tal de ir e voltar carregando livros, pedalando no mundo da fantasia, voando sobre os morros floridos e encantados. Costumava ler à noite, pois durante o dia ia à escola e ajudava no trabalho da casa ou da roça; a não ser que chovesse.

Selires era o nome da minha professora da quarta série. Certa tarde, pouco antes do término da aula, abriu um livro com cheiro de novo que trouxera da própria casa. Iniciou o que seria uma das mais lindas histórias que já ouvi contarem, com voz pausada e macia. Sábia, encerrava as aulas todos os dias alguns minutos mais cedo, para nos ler um trecho da história. Ah, “Os Cisnes Selvagens”, de H. C. Andersen!

Penso que nascemos com o gosto pela leitura, mas é preciso haver um estímulo externo. Os livros conversavam comigo de um jeito ameno, suave, alegre ou profundo. As verdades ou sonhos lá contidos eram parecidos com o que levava dentro. Por isso, a vontade crescente de chegar a algum lugar por meio do texto, de conhecer a história até o final, para chorar, ou sorrir (feito o cisne ex-patinho feio) antes de dormir.

Depois, vieram outras leituras. Houve a fase de ler todos os títulos (disponíveis nas bibliotecas da cidade), de Laura Ingalls Wilder; os de José Mauro de Vasconcelos (o meu gosto por filosofia oriental começou ali, com o “O Palácio Japonês”), sem contar que eu também tive a minha árvore amiga e confidente (um pé de ingá).

De lá pra cá, muita coisa aconteceu e muito tempo se passou. Muitos livros foram lidos. Ler um livro é ler a si mesmo. É mergulhar no abismo e retornar com uma estrela brilhante.

Não despertou para o prazer da leitura? Ainda há tempo. Eles nunca estiveram tão perto. Basta acessar no computador, dirigir-se à biblioteca mais próxima ou à livraria. Quem lê, cintila.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Beija-flor (crônica)

Quem não se encanta em vê-lo voar? Pássaro miúdo de aparência frágil que habita nossas cidades e surge de maneira surpreendente, quebrando a rotina do dia. Quem não se encanta embevecido ante a criatura que bate mil vezes as asas no ar ao sugar o néctar da flor?

Costumo receber a visita destes pássaros minúsculos e graciosos no apartamento em que moro, no centro. Procuram por uma flor, diz a ciência. Procuram por mim, por alguém, por algo mais, pensa minha alma de poeta. Fico quieta. Não me mexo. Esfinge, para não afugentá-los.

Na biblioteca, volta e meia um desses nos visita. Esvoaça sobre nossas cabeças, passeia pra cá e pra lá, pousa nos livros, sobre um Borges, uma fileira de Clarice Lispector. Voa desajeitado à estante de literatura estrangeira, esbarrando num Stephen King. Assustado, encontra a janela aberta, o vento, o vôo. Talvez nunca mais volte. Sem nunca ter lido Poe.

Suzana, você está fugindo do assunto da hora, a bolsa. Ora, ora, deixem a bolsa pra lá. Tanta ganância assim. Diga-me, beija-flor, se você investe na bolsa, se especula tudo e tanto e mais. Cedo ou tarde, a farra ia terminar.Lembro-me do pássaro que entrou na minha casa e voou direto à estante dos livros. Pássaro sabido. Eu? Fiquei longe, bem longe, pra não atrapalhar. Será que lia Fernando Pessoa, Quintana, ou algum outro livro bacana?

Leitor, me achas tola por bater de leve nestas teclas para te contar insignificâncias? Saiba que não me importo de ser tola e tolamente olhar os pássaros que me visitam e acreditar que exista motivo. Meu desconhecimento da ciência é voluntário. Ainda que saiba que pétalas são folhas. Ainda que saiba, jamais olharei uma pétala como a folha que é.

Talvez passe pela sua cabeça, leitor, que eu seja uma pessoa egoísta. O mundo todo voltado para salvar as bolsas e os bancos e os bolsos de pessoas que nunca vi em minha vida (e eu tola). Tu deves estar me achando egoísta, mesquinha, ou desligada. Mas não é exatamente assim. Sei que existe uma crise mundial porque pessoas que investiam em determinadas “ações” e “títulos” deixaram de investir nisso e partiram para outros investimentos e outras “rendas”.

Na verdade, as ações que me interessam são as da vida real, nunca peguei uma ação daquelas na mão. O título que muito me interessa é o que vai nas lombadas dos livros, no alto dos textos e dos poemas. E a renda, claro, a que enfeita roupas e almofadas.

Após a leitura do parágrafo anterior, talvez tu cogites a possibilidade da minha inexistência. Mas eu e milhares de pessoas que nunca viram títulos ou ações existimos sim. Simplesmente levamos no bolso o dinheiro suficiente para viver. Feito um beija-flor voamos pela vida. Sem mania de grandeza, sem grandes investimentos, sem grandes fortunas. Temos asas, sonhos e alegria. Isto nos basta.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Sete mulheres e um gato (crônica)

Quando Eunice convidou Gertrudes para o café, esta foi logo alertando: "Não sou boa nisso". "Não faz mal", disse a primeira, "assim tem sido, estamos todas no mesmo barco, ninguém se considera plenamente feliz nisso". "Ou, se alguém se considera, não nos conta", emenda Gertrudes. "Ou não é do nosso círculo", conclui Eunice.

Ao entrar no apartamento vivamente decorado, Gertrudes se sentiu confortável, como se aquelas paredes fossem a roupa que melhor lhe coubesse. Outras amigas já haviam chegado, todas para conversar sobre aquilo. Na verdade, o tema não fora escolha aleatória, nem o café. Eunice desenvolvia uma pesquisa para o mestrado dentro daquela temática.

As colegas chegavam e se cumprimentavam. Algumas se conheciam apenas de vista, outras se conheciam um pouco mais. Não havia, digamos, uma amizade profunda entre elas, daquela capaz de nos fazer até contar segredos. Todas tentavam se mostrar completamente desinibidas. Aliás, não foi difícil desinibir-se, pois, assim que as moças adentravam, a anfitriã lhes oferecia, em vez de café, vinho. O convite sugeria que levassem um livro que abordasse aquilo. Pessoas cultas que eram, nenhuma se esqueceu de levar, aliás, teve quem levou até mais de um.

Havia um gravador ligado na mesa de centro da sala de estar, onde as moças conversadeiras se instalaram aos poucos. Do sexo oposto, apenas o gato, um felino esperto, observador e irônico. O bichano saía da sala nos momentos mais conflitantes da conversa - vê-se que o perfil masculino encontrado nos homens atua também nos gatos, ou vice-versa.

Vinho vai, vinho vem, as mulheres desenrolavam a língua e contavam fatos sobre como lhes fazia bem a presença daquilo ou de como a falta lhes fazia falta. Mas tudo dentro de um certo equilíbrio. Todas se mostravam modernas e desenvoltas, capazes de sublimar aquilo das mais diferentes formas, afinal, eram mulheres vividas, experientes. Se bem que, em algumas situações, pareciam umas tolinhas, umas adolescentes.

Em dado momento, a anfitriã convidou o seleto grupo de sete mulheres para irem até a cozinha servirem-se de lasanha. Serviam-se e retornavam à sala para comerem soberbamente. O único momento em que se fez silêncio. No intervalo entre um prato e outro, uma delas deixou escapar: "Outro pecado interessante, a gula". "Sem dúvida, mas eu gosto mais do outro", emenda alguém, sem pestanejar.

Antes que se dessem por satisfeitas, a anfitriã anunciou que a sobremesa foi servida. Nenhuma se fez de rogada. Entre um doce e outro, voltavam a dialogar sobre aquela questão fundamental, do que seria melhor: isto ou aquilo?

Após o lanche, as sete mulheres já não achavam tanta graça em continuar a conversa, talvez por conta do efeito do vinho que passara, ou por conta de que um dos pecados fora muito bem saciado, ou porque as horas avançavam. Fato é que uma por uma se levantou do sofá em atitude de despedida, alegando coisas para fazer em casa, filhos para cuidar... Foi quando a anfitriã levantou a hipótese de convidar homens para a próxima reunião. Todas acataram de imediato, afinal, eram modernas e democráticas, não tinham intenção de fazer nenhum clube da Luluzinha.

Então estava combinado, para a próxima convidariam homens. Não valia homem casado, apenas solteiro, bonito e gosto... quer dizer, inteligente.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Poema (autora: Regina Carvalho)

Supliquei
ao deus do espelho
que com seus velhos
olhos cruéis me fitava:
me deixa amar novamente
como amei aos 20 anos
amor de ilusão
e esperança
Calado ele estava,
calado ficou.
Pousado na cabeça
cega
de Minerva
o corvo , porém,
sentenciou:
nevermore, nevermore!

Regina Carvalho é professora aposentada da UFSC e escritora. Mantém o divertido (e inteligente) blog "Coisas de Regininha" (veja link ao lado).

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Cuidado: naufrágio (crônica)

Sou uma pessoa bem comum. Mantenho certas rotinas. Minha cabeça demora a acordar. Se não tomo café com leite pela manhã, não sou gente. Era justamente isso que fazia, preparava meu café da manhã. Nós, humanos, costumamos pensar enquanto fazemos coisas triviais. Pensava justamente que vivemos uma época em que não se pode reclamar de nada, a época do conformismo. Na verdade, pensava inconformada, a falta de espaço para se conversar sobre isso é que tem gerado muita confusão. Semanas antes da eleição (que foi ontem), eu me questionava se valia a pena publicar um texto que falasse de política, engajado.

Após o café, outra rotina da manhã, ir ao computador checar e-mails. Eu sempre me pergunto se vale a penas checar isso todas as manhãs, pois, afinal, pouquíssimas das mensagens que recebo são escritas para mim, a maioria delas são encaminhadas, muitas são propagandas ou convites para eventos. Um e-mail encaminhado por uma amiga trazia o seguinte título: "O melhor e-mail do mundo". Confesso que não costumo ler esse tipo de mensagem, classificada por mim como de auto-ajuda. Mas a minha reflexão da manhã era justamente se deveríamos nos conformar com tudo, com o governo, com o salário. Se nos conformarmos com tudo, tudo ficará exatamente do jeito que está? Não, se nos conformarmos com tudo, ficará pior, infelizmente.

Não devo reclamar de nada nem lutar por nada melhor, segundo o texto bilíngüe com imagens, que dizia mais ou menos o seguinte: se você não está contente com o transporte coletivo de sua cidade, veja este (então, a imagem mostrava pessoas de outra cultura caminhando sobre uma ponte de cordas); se você acha que a vida não está boa para você, então veja a vida deste guri (a imagem mostrava um menino carregando um homem numa espécie de carrinho de mão). Sem dúvida, "O melhor e-mail do mundo" tinha imagens impressionantes, quase me convenceu. Na verdade, nunca soube precisar qual vida é melhor, se a minha ou a de um africano, se a minha ou a de um menino que carrega outro homem numa espécie de carrinho de mão, se a minha ou a de uma mulher que aos cem anos carrega gravetos nas costas e por isso anda curvada. Como saberia?

Tenho outro nome para mensagens assim: auto-engano. Cada cultura tem sua história. E, claro, a mensagem foi desenvolvida no Ocidente e mostra, em sua maioria, imagens do Oriente. Quem conhece um pouco de história, sabe muito bem por que há tanta pobreza lá e riqueza cá. A discrepância não é maior porque nem todo mundo se acomodou por lá, aliás, todos sempre lutaram, muitos, inclusive, morreram lutando. O texto também não respeita nem um pouco as diferenças culturais, afinal, os norte-americanos não preservaram sua cultura, pois não a tinham, não nasceram naquelas terras, vieram de outras e praticamente exterminaram os que lá moravam quando da colonização. Além disso, não vejo nenhuma abordagem ecológica ou social no texto, apenas conformismo: aceite a vida que você tem sem reclamar, sem lutar, sem poder sequer desejar outra coisa.

Isso pra mim não serve. Eu quero sim uma vida melhor, um planeta melhor, conviver com pessoas que sonham um mundo melhor e não se conformam com tudo e deixam o mundo naufragar.
In: jornal A Notícia, Anexo, p. 3