segunda-feira, 18 de junho de 2007

Da arte de sentir o mar

Da primeira vez que viu o mar abriu os braços. Menina pequena e frágil. Ele era maior que tudo. Até do que os arranha-céus. Mais alto. Quase sentiu medo. Que força é esta à minha frente? Por que o mar não escapole pelos lados se tanta altura e líquido? Aos poucos foi se acostumando com o barulho-encanto. Brincou na areia extensa com um graveto: desenhos para Deus. Nem chegou a molhar os pés na água, estava de conga branca e nova. Foi por acaso que viu o mar pela primeira vez. Brincava na casa de uma coleguinha mais rica. Os pais dela convidaram: vamos dar uma volta na praia? Foram e levaram a amiguinha da filha junto. Um marulho em tons azuláceos inundou os sentidos da pequena para sempre.
Da outra vez foram de ônibus. Ficariam na casa de uma vizinha. As crianças tontearam durante a viagem. Uma vomitou na mulher com jeito de bruxa que se ofereceu para levá-la ao colo. As unhas vermelhas e compridas da mulher apertando sua frágil barriguinha. Nunca antes aceitara o colo de uma estranha. Algumas perguntas necessárias: por que a vizinha comprou uma casa tão longe da praia se há tantas mais perto? Por que enfileiram prédios um ao lado do outro para esconder o mar? O primeiro banho foi nas canelas. Deitar o corpinho na praia e sentir a areia tocar a pele pela primeira vez. Tantas coisas pela primeira vez.
Eis que um dia, finalmente, alguém da família aluga uma casa na praia. Numa outra praia, ainda sem prédios. Num dia de muito sol subiram numa encosta para melhor avistar o mar. Dois dos maiores desceram próximos da arrebentação e sentaram numa das pedras. Ficaram algum tempo em desafio. Depois subiram, indo se juntar aos outros. Por questão de segundos não acontece uma desgraça: uma onda imensa varreu a pedra de antes. Um susto. Brotaram perguntas em vez primeira: o que existe antes e depois de mim, o que fui, o que serei? Ninguém soube responder. As ondas iam e vinham.
Tão fácil nadar, é só bater braços e pernas. Difícil foi perder o medo e soltar o corpo. O medo é pesado, afunda. Vamos ver quem chega primeiro nadando em tal lugar? Quando cansavam, boiavam, riam, olhavam o céu, contavam nuvens. Até as barrigas roncarem ou alguém gritar da praia seus nomes. Havia apenas um chuveiro e muitos para o banho. Corriam, pois quem chegasse antes... Tão divertido viver.
O mergulho: no litoral do Nordeste, aluga o equipamento (snorkel, máscara e nadadeiras). No início, é preciso se acostumar ao respiro pela boca. Aos poucos, o corpo se adapta ao ritmo marinho. Existe a possibilidade de nadar com famílias de peixinhos coloridos, ver cavalos-marinhos, e, dentro e fora de tudo, ouvir um som ou silêncio parecido com aquele primeiro da infância, do primeiro sentir o mar, ou seria do primeiro sentir no feto? Pensava nisso quando se viu deslizando por sobre uma raia imensa. Surpresa e júbilo.

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Solução do enigma (crônica)

Nem as montanhas conseguem segurar aquele que vem do sul. Nas ruas, ouvimos um “oi” diferente: “que frio!”. Mãos geladas. Compensaria ir às lojas procurar por luvas de lã? Vontade de tomar chocolate quente, sentar ao sol, ler um poema ou fazer tricô. Tricotar esquenta as mãos. Toca o telefone:
– Descobri o autor do poema – grita do outro lado da linha uma amiga que gosta de poesia. Há anos não nos víamos. Pergunto interessada:
– De qual poema?
– Daquele que pedi para você pesquisar aí na biblioteca. Lembra?
– Sim, lembro que procurei em todas as coletâneas de autores ingleses. Faz tanto tempo. Na época nem tínhamos internet. Saudade daquele poema.
– Então, escute:

Aedh wishes for the Cloths of Heaven
Had I the heavens’ embroidered cloths,
Enwrought with golden and silver light,
The blue and the dim and the dark cloths
Of night and light and the half light,
I would spread the cloths under your feet:
But I, being poor, have only my dreams;
I have spread my dreams under your feet;
Tread softly because you tread on my dreams.

– Ah, quero ouvi-lo em português! (o meu inglês ficou na Era do gelo, já o da minha amiga, parece que melhorou.)
– Tudo bem:


Se eu tivesse os trajes bordados do céu,
Adornados com luz dourada e prateada,
E os trajes escuros, sombrios e azuis
Da noite, à luz e à meia-luz,
Eu estenderia estes trajes sob seus pés:
Mas eu, sendo pobre, tenho só os meus sonhos;
Então estendo os meus sonhos sob seus pés,
Com suavidade porque você caminha neles.

– Belo! Tal é citado no filme Nunca te vi... Sempre te amei.
– Comprei o livro num Sebo. Não traz o poema.
– Não traz, eu sei. O meu foi comprado num Sebo também. Que bom que nem todos gostam das mesmas coisas.
– Ou de armazenar.
Rimos.
– Então, de quem é o poema? – pergunto curiosa.
– Digitei no google o primeiro verso entre aspas. O provedor listou três sites: os dois primeiros citavam o poema sem mencionar a autoria, infelizmente. Eram de blogs.
– E no outro?
- Pois é, cliquei no item restante meio sem esperança. Meu coração já batia descompassado...
– Compreensível, tanto tempo de procura (um enigma), claro que com intervalos de não-procura.
– Sim. Esse foi o meu problema...
– Quem o escreveu, afinal?
– O poeta William Butler Yeats.
– O irlandês que foi senador?
– Sim, esse mesmo. Prêmio Nobel de Literatura de 1923.
– Ele é bonito – deixo escapar.
– Sim, além de tudo, bonito. Pena que não me chamo Maud Gonne.
Rimos.
– Qual a sensação da descoberta?
– Apaixonada! Fiz matrícula num curso de inglês.

Matriculou-se num curso de inglês para ler Yeats no original. Outra amiga estuda as tábuas sumerianas para agradar o namorado que é arqueólogo. Antes que a necessidade de impressionar alguém apareça, decidi retomar meu curso de inglês. Mas em agosto, bem entendido. Em julho eu quero fazer tricô.

Publicada no Caderno Anexo (Jornal A Notícia - 04/06/2007)