domingo, 28 de setembro de 2008

Poema para Thomas

Thomas, teu nome
(Thomas Mann)
Thomas homem

Tomo teu nome em meu verso
em meu avesso
tomo teu nome por inteiro

Teu nome e um cravo vermelho
teu nome e uma tatuagem na mão
teu nome e um regador
Thomas bom

Então, vem, Thomas,
sejamos tu e eu
a tomarmos o café da manhã

E depois?

Depois vamos ao jardim
cuidar das zínias e da
boca-de-leão

O nome do nosso cão? Flox
Rolamos os três no tapete de primavera
tomados de enorme felicidade

Como é mesmo teu nome
(quando nos conhecemos):
Thomas

No dia seguinte:
toma, colhi estas flores para você
colhi estas flores para você me ver nelas
toma, sou o Thomas e colhi estas flores para você me tomar junto com elas

As minhas mãos tomaram um susto
estavam desacostumadas a tomar flores
as minhas mãos trêmulas

Ou então foi uma brisa que soprou
brisa de primavera
brisa de amor

sábado, 20 de setembro de 2008

Floema

Chuva
em algum lugar se esconde a estação das flores
da chuva de flores
da chuva que brota do chão
da chuva que desdobra-se em pétalas e cor
da chuva que tem outro nome
da chuva que me põe em transe

Dois olhos
mil flores

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

A culpa é do marceneiro (crônica)

Telefono pra amiga no meio da tarde. Um homem atende:
- Alô! (voz grossa e bonita)
Fico sem saber o que dizer, pois a minha amiga mora sozinha. Um sorriso faceiro se forma em meus lábios, enquanto pergunto:
- Quem fala?
Era pra ter perguntado outra coisa. Deveria perguntar pela pessoa que procurava, por exemplo:
- A Flávia se encontra?
Ou:
- Poderia falar com a Flávia?
Ou, de forma mais vaga:
- É aí que mora a Flávia?
Mais técnica:
- Liguei pra qual número?
Ele, bastante objetivo:
- A dona Flávia saiu. Sou o marceneiro.
O risinho cínico continuou nos meus lábios.
Ele: - Ela volta logo.
- Tudo bem.
- Quer deixar recado? Pergunta atencioso com aquela voz de barítono.
- Não, obrigada, ligo mais tarde.

A nítida, fantasiosa e falsa impressão de que ao telefonar interrompi alguma coisa, qualquer coisa que não fosse um trabalho de carpintaria sobre uma superfície de madeira. Qualquer coisa que fosse um trabalho de carpintaria sobre uma superfície macia, deslizante.

Mais tarde, Flávia me ligou. Ela não estava com cara de quem estivera ajudando na marcenaria.

Acho que a Flávia é como eu, não suporta a presença de estranhos na casa. Vai logo saindo. Prefere deixar a casa sob os cuidados atenciosos de um marceneiro, encanador, técnico de parabólica, de computador, mesmo que durante essa ausência ele fuce nossas gavetas, armários... Como iríamos saber?

Pior seria se ele fuçasse nossas mãos, braços, olhos, pensamentos, fazendo com que nosso equilíbrio ficasse por um fio ao percebermos as botas sujas, os farelos de madeira caindo sobre o piso recém limpo ou, então, tendo de ouvir comentários do tipo: "Tá na hora de trocar isso, dona", ou: "Quem foi que consertou isso antes? Fez tudo errado!"

O marceneiro poderia não ter atendido ao telefone. Ora, se a dona da casa não estava, pra que atender? A culpa é dele e não minha. Não teria imaginado e a Flávia não ficaria tão inflamada (zangada) comigo. Ora bolas!

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Vernante

Novamente Kafka
trazendo a compreensão do incompreensível
através do lugar nenhum
e das portas que não se abrem
(movimento circular e anulável)

Literatura da verossimilhança
leitura dobrada e desdobrável
(havia uma segunda camada de pétalas)

Preferível viver com Kafka
e com as portas fechadas
mesmo porque
não existe comunicação efetiva
entre os interesses aflitivos

Preferível
o mundo verossímil
em alto estilo

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Outra coisa (crônica)

"Entra pra dentro que o sole tá quente." Meu pai me matava de vergonha. Era sempre a mesma coisa. Cada vez que chegava alguém lá em casa, era isso que ele dizia. A não ser que chovesse. Mas as visitas só vinham em dias de sol, em dias de chuva as pessoas preferem ficar em suas casas.

Tentei ensinar-lhe que "sole" é sol e que "entrar pra dentro" é uma redundância, mas logo percebi a inutilidade de meu ensinamento. Não que meu pai não fosse um homem inteligente, o fato é que os parentes que nos visitavam falavam um português ainda pior do que o de meu velho pai.

Constrangia-me quando os meus colegas de escola iam lá em casa e a primeira coisa que meu pai falava (parecia uma praga) era "entra pra dentro que o sole tá quente". Percebia nos colegas a vontade de rir. Disfarçavam para rir depois, acho.

Sentia pena do meu pai, contudo não demonstrava, pois sei que as pessoas não gostam de saber que sentimos pena delas. Na verdade, meu pai adorava gente. Por isso, quando estava de folga, sentava próximo da porta dos fundos, por onde as visitas normalmente passavam. Ou seja, era o primeiro a recebê-las.

Entristecia-me o fato de que as pessoas rissem de meu pai. Pois eu sabia que ele não tinha culpa de falar assim. Aliás, ele tinha um jeito bonito de falar. E havia tantos que falavam ainda pior. Principalmente os que moravam mais pra cima de nossa casa, em direção ao interior. Já os que moravam mais pro lado de baixo, na direção do centro da cidade, falavam melhor.

Nasci entre o interior e a cidade, num lugar que não era nem uma coisa nem outra e as duas ao mesmo tempo. Havia uma tecelagem do outro lado da rua, coisa de cidade; um rio de prainha limpa passava nos fundos de casa, coisa de interior.
Até a quarta série, estudei na escolinha que ficava mais pra cima de nossa casa. Quando, a partir da quinta série, mudei-me para uma escola maior e mais próxima do centro da cidade, foi que descobri que muitas das palavras que falava, pensando dizer tal coisa, infelizmente, significavam outra. E soube da pior maneira.

A professora de ciências enumerava algumas doenças e convidava os alunos a participarem da aula. Vários colegas já haviam se manifestado, quando eu, tolinha, levantei a mão e falei a palavra que julgava ser o nome de uma doença. A gargalhada foi estrondosa. Até a professora riu. Pior é que ninguém me explicou, nem eu ousei perguntar, tamanho o constrangimento. O que ficou muito claro é que aquela palavra não era doença coisa nenhuma.

Chegando em casa, quietinha, fui à estante de livros consultar no dicionário. Na letra "p": "Pênis: órgão sexual masculino" e não a doença da qual, segundo minha mãe, morrera uma prima distante (a prima morreu de apendicite).

Concluí que o caso de meu pai era menos grave, tratei de ensinar à mamãe (inutilmente). Quando ouvia ela dizer às visitas que a prima morrera de "pênis", caso estivesse por perto, corrigia (já morta de vergonha): "Apendicite".

Vai ver, mamãe sabia do que falava. Vai ver, a tal prima morreu mesmo foi de orgasmo.
In: Jornal a Notícia, Anexo, p.3

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Drops

Escrever um bom poema é melhor que gozar.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Bienal do livro (crônica)

São Paulo estava cinza no primeiro dia. Um cinza bonito. Cinza de vida e pessoas desconhecidas passando por mim, de árvores no meio das ruas - vistosas, mais do que os prédios pichados. De pessoas pobres dormindo nas calçadas sob cobertores ou papelões. De vendedores ambulantes. De trabalhadores.

E da Bienal do livro que acontece a cada dois anos. E do hotel com toalhas brancas, piso branco, lençóis brancos e um café da manhã de todas as cores.

O que olhar primeiro na Bienal? Passear primeiro e comprar depois? Dar um rolê e ver todas as novidades e promoções e, somente então, delinear um roteiro de compras? Mas depois as pernas doem, depois dá vontade de os ouvidos descansarem, depois já se está cansado de tanto esbarrar nos outros e desviar daqueles vendedores de revista que te param no corredor.

O importante é não dar importância às coisas sem importância.

Muitos livros são vendidos a preço de banana, mas, diga-se de passagem, livros que valem menos do que uma banana, verdade seja dita. Sim, justamente na literatura infantil, a que deveria ser mais cuidada, vemos muitos livros montados de qualquer jeito, meras reproduções. Se tentarmos descobrir a autoria ou adaptação daquela obra, não encontraremos.

Tenho visto isto por aqui também, nas feiras dos livros: dá-se um vale para as crianças, de um a dois reais, com o qual compra-se justamente aqueles livros, que nem sei se valem um ou dois reais. Não sei até que ponto possam cativar o leitor. Também não sei de que adiantará tantas crianças na feira gigante. Nem até que ponto isto marcará positivamente a memória delas. No entanto, são tentativas de aproximar a criança do livro.

Os adultos se divertem, porém, se irritam e se chateiam um pouco também, principalmente com aqueles vendedores que não sabem responder a nenhuma das perguntas sobre livros que você faz. Cadê os bons profissionais do livro? Coisa rara hoje em dia. Mas eu fui muito paciente, afinal, esta era a minha quarta Bienal do livro. Digamos que tenho uma certa experiência no assunto.

Não me importei de pegar fila pra comprar um lanche, de levar alguns empurrões, outros esbarrões, do barulho, da fila no banheiro... afinal, estava na maior feira de livros do país. Tantas capas lindas, alguns brindes interessantes, algumas bagatelas. Só não havia espaço para sentar e folhear com calma. De repente, você se dá conta: quanta gente gosta de ler!

Pois é, e pra quem gosta, pode virar febre. Presenciei algumas cenas de pessoas eufóricas diante de um lançamento de seu autor preferido. Agarravam-se ao livro apressadas e desconfiadas. Se fosse à mesa e houvesse apenas um doce no prato, talvez você não o pegasse; mas livro pode, pois você sabe, tamanha identificação te torna, digamos, íntima daquele artefato.

Livro, o objeto que nos torna livre. Leve um livro pra casa, não qualquer um, leve aquele que te leva pela mão, pra dentro de um lugar seu e de mais ninguém.