segunda-feira, 14 de abril de 2008

Carta de Clarice*

Querida Suzana,

Desculpe a demora em responder. A folha chegou inteira e bela. Agradeço o convite para o licor de figo e para o doce de polvilho. Devem ser deliciosos.

Estive te observando enquanto lias as minhas cartas. Confesso que, de início, fiquei um pouco chateada. Não esperava ver minha correspondência privada publicada em livro, disponibilizada ao público. Qual o direito de um morto? Mudei de opinião ao perceber que os leitores aprendem lendo minhas cartas, inclusive você. Observei que anotas a lápis nos cantos das cartas quando tratam dos meus escritos ou traduções. Isso compensa o pesar.

Também notei que não sabias muito sobre a minha vida e que, de início, a leitura não engrenou, você iniciou umas três vezes e largou, contudo, na semana passada, voltavas do trabalho pensando no livro, ansiosa para retomar a leitura e assim compor um mosaico da Clarice escritora. Detalhe importante: havia publicado apenas um livro quando eu e Maury fomos morar na Europa. Tempos difíceis, o mundo ainda em guerra. Minha tristeza é visível. Nem tu imaginavas que a minha carreira de escritora houvesse sido tão difícil, não sabias da minha ansiedade e angústia (e do meu cansaço) em dar um livro por terminado, antes que o mesmo me matasse.

Agora você sabe um pouco mais sobre mim. Sabe, por exemplo, da dificuldade para encontrar uma editora no Brasil que publicasse meus livros, mesmo tendo por amigos Rubem Braga, Fernando Sabino e Érico Veríssimo. De como vibrei quando a revista de uma universidade norte-americana publicou meu conto "Amor". De como me chateava quando as traduções dos meus textos não eram bem feitas. E, principalmente, como me chateavam os jantares que organizava.

Você deve ter notado que praticamente todas as cartas tecem algum comentário sobre o meu trabalho, ora pedindo uma opinião à Tânia (irmã), ora reclamando da resposta da editora que não vinha, ou do pagamento. Assim como você deve ter percebido que a partir do nascimento de Pedro fiquei mais alegrinha, não tive mais aquelas crises de solidão. Se bem que as cartas, naturalmente, rarearam. Depois nasceu Paulinho. Nessa época já morava em Washington. Os filhos, sem dúvida, deram novo sentido à minha vida, trouxeram cor à frieza que é morar no exterior, longe das pessoas queridas.

Em nenhum momento cogitei não ser escritora. Isso você percebeu. Assim como você deve ter observado que havia um grande amor entre mim e minhas queridas irmãs, formávamos o trio Lispector, daí o título do livro publicado pela Rocco: "Minhas Queridas". Uma edição bem cuidada, sem dúvida, mas eu preferiria que as notas estivessem ao pé de página e não ao final do livro, dá um certo trabalho durante a leitura, é pau, você não acha?

Soube que tua mãe ganhou um cachorro. Coitadinho, vocês precisam definir um nome para ele, ela o chama de Teté, você o chama de Totó, Luísa de Pitoco... Eu o chamaria de Dilermando.

Seja feliz, seja alegre, Deus te abençoe.

Clarice

* Resposta fictícia de Clarice Lispector à carta que escrevi para a promoção "Minhas Queridas", da editora Rocco.

Um comentário:

ítalo puccini disse...

de uma sensibilidade tocante!

parabéns!

Í.ta**