segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Dilúvio (crônica)

A chuva começa com um pingo e mais outro. Também pode começar com um dia de céu azul. Talvez o indivíduo saia de casa pela manhã com sol e se arrependa de não ter calçado botas de borracha. Nenhuma certeza de que o tempo não mudará entre a manhã e a noite, entre a ida e a volta do trabalho, entre o anoitecer e o amanhecer.

Os noticiários anunciaram que choveria acima do normal, mas o que seria acima do normal para quem já estava numa maré de chuva há meses, com praticamente todos os finais de semana do semestre chovendo? Nenhuma praia ainda, a pele branca, mas isso era o de menos, até porque a saúde está nas peles que menos tomaram sol.

Nutrimos a falsa idéia de que se pode tudo, de que natureza é uma coisa que nem mais existe, afinal, a água é da empresa que nos vende; a energia da empresa que nos cobra; e a terra em que moramos foi comprada... ainda não pagamos pelo ar que respiramos.

Moramos em prédios, moramos apertados e nos assustamos ao encontrar o supermercado lotado em pleno domingo ao meio-dia, sendo que estavam lá apenas os menos atingidos, porque os mais atingidos estavam tentando segurar barrancos ou ilhados ou em abrigos.

Sensação sinistra, por pouco a coisa não fica ainda pior, pois no domingo à noite as águas baixavam em Brusque, mas subiam em Itajaí. Nem uma tristeza se dissipara, outra, ainda maior e mais pungente, começava. Somente na segunda-feira os jornais de porte nacional se deram conta do tamanho da catástrofe.

Geólogos e geógrafos tentam explicar, engenheiros mostram projetos. A grande verdade é que o mundo parece pequeno e insuficiente para a quantidade de pessoas que o habitam. E as pessoas que o habitam perderam a noção do bom senso. O conhecimento produzido não é aplicado para uma efetiva melhoria da convivência humana no planeta Terra. Nem países mais evoluídos conseguem isso, imagina o Brasil.

Dias antes, o comércio focado em vender para o Natal, as famílias preocupadas em consumir. Uma insatisfação coletiva pairava no ar, nada é suficiente para a felicidade permanente. Então vem a catástrofe e pega todos de surpresa. De maneira que ninguém mais tem certeza de nada, olhamos atônitos para a estatística dos mortos e dos sonhos soterrados ou submersos.

Deveríamos estar mais preparados para as adversidades, mas a ilusão nos rodeia. A vivência em abrigos pode nos ensinar a ver o outro mais de perto, devemos ajudar os mais necessitados agora e adiante. Urge que cuidemos da mãe natureza e que as prefeituras planejem e fiscalizem melhor. Liberar áreas impróprias em troca de favores políticos, cortar morros e devastar matas são cenas corriqueiras em Santa Catarina. Adiante a catástrofe.

Precisamos evoluir, nos tornar mais sábios e fraternos. Isso não será fácil, pois o sistema que nós ajudamos a criar transformou-se em um jogo de interesses. Vivemos numa imensa ilha, o que atinge um, inevi-tavelmente, atingirá o outro.

In: jornal A Notícia, caderno Anexo, p. 3 (01/12/2008)

5 comentários:

J.R. Lima disse...

Muito lúcida a crônica. Quando pararmos de olhar pro umbigo da humanidade e de vermos nele o centro do universo, talvez (apenas talvez!) ainda haja tempo para algo se recuperar.

Um abraço!

tesco disse...

O problema é mesmo esse: O conhecimento não é aplicado na convivência humana. O que interessa é a relação custo/lucro. Que desabem os edifícios, que deslizem os morros, que os rios se expandam, se tá dando lucro, tá tudo bem. Mas, como se dizia trinta nos atrás, "essa mamata vai acabar!". _ Beijos.

Cynthia Lopes disse...

Suzana, excelente seu texto. Estamos ouvindo notícias alarmantes de Santa Catarina e todos fazem campanhas de solidariedade. Como estão as coisas realmente por aí? Mande notícias, bjs

marcia cardeal disse...

Só agora consegui entrar pra ler. Que bonito !!! bjs

Anônimo disse...

Quem sabe as calamidades sejam testes aplicados pela vida, avaliando a solidaridade e a humanidade de cada um de nós. Muito boa, a sua crônica. Parabéns!