segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Dasabrigados (crônica)

– É aqui, pai?
– Sim filha, é aqui.
– Gostei.
– Olhe o seu quarto novo...
– Que lindo, pai!
A mãe prepara o primeiro almoço na casa nova.

Anos mais tarde, numa enchente devastadora, a casa sumiria, o morro desabaria em lama sobre o quarto, cobrindo boneca, menina, mãe, pai. Engolidos pela montanha.

Ou então: a casa desabou, mas os três se salvaram por um triz, quis o destino (ou a sorte, ou o anjo) que estivessem fora, em viagem, quando a avalanche desceu. Ao retornar, o pai olha a casa desabada e não acredita, a mãe perde a fala, a filha chora.

Caminham os três desalentados pela rua. Ainda ontem tinham casa, quarto e cama, de repente, tudo tomado de lama. E a alma? Molhada de chuva.

Desorientados. Quem tirou a casa que estava aqui? Cadê nosso porto seguro? É na casa que SOMOS, é na casa que tiramos a roupa, tomamos banho, dormimos, fazemos amor com o companheiro, guardamos os segredos, os sonhos, os brinquedos. É na casa que choramos.

E num estalar de dedos, ou um lance de dados, tudo nos é tirado, o brinquedo, o sonho, a casa, a liberdade.

Abrigados num abrigo. A solidariedade aconchega. Comida não falta, nem colchão, mas dentro, meu Deus, uma memória que não se apaga, a lembrança da construção, dos sacrifícios de anos de trabalho, do dinheiro juntado para comprar a casa, os móveis, as roupas; a primeira olhada pela janela da casa, a vista da cozinha, o cheiro de café, tudo vem e vai enquanto a noite cai.

Alguns saíram às ruas saqueando coisas, desespero aliado a despreparo, falta de paciência, medo. E se a coisa piorar, e se a chuva não passar, e se o barro não secar, como será?

O morro do baú. Era uma vez o morro do baú. Depois veio um dilúvio, quarenta dias e quarenta noites. Lama e mortes.

A casa, o porto seguro, refúgio das dores do quotidiano, alicerce onde reinamos. A casa caiu, a casa sumiu, a casa cheia de água. O coração cheio de lágrima.

Mas a força brota, de algum lugar a força brota, de mangas arregaçadas as paredes são lavadas. A vida segue, vamos em frente, daqui mais uns dias, mais uns meses, mais uns anos, quem sabe...
– É aqui, pai?
– Sim filha, é aqui.
– Gostei.
– Olhe o seu quarto novo...
– Que lindo, pai!
A mãe prepara o primeiro almoço na casa nova.
In: Jornal a Notícia, Anexo, p. 3 (05/12/2008)

3 comentários:

Anônimo disse...

Lindo, menina!
Fiquei comovida!
Saudades.

J.R. Lima disse...

Sempre lindas tuas crônicas, Suzana!

silvana tavano disse...

E a força brota -- lindo texto.

Adorei o nome do seu blog.

Silvana