segunda-feira, 23 de junho de 2008

O segredo (crônica)

Constroem um edifício bem do lado de onde moro. Aquela construção vertical, estruturada em ferro e cimento. Antes de instalar um monumento desses para resguardar humanos, é preciso fazer o fundamento. O proprietário ou construtor teve a infeliz idéia de fazer o tal fundamento aos domingos, vejam só, que coisa mais sem fundamento, ora, domingo é o dia mais silencioso por aqui, o dia em que nós, trabalhadores, costumávamos dormir até mais tarde.

Tenho acordado com barulho de martelo, serra, conversas... Esse pessoal que trabalha em construção começa cedo. Isso tem me deixado de mau humor. E o que é pior, uma construção desse porte leva tempo. Por enquanto, o barulho de martelo vem da construção do barraco de madeira que constroem para servir de morada aos peões da obra.

Já senti, várias vezes, vontade de abrir a janela e gritar: "Ei, parem de martelar". Ou de deixar uma carta pedindo por silêncio. Mas tudo isso seria inútil. Notei que estão loucos pra derrubar uma ou outra palmeira esquecida no entorno do terreno e não quero revanche. Sinto que meus dias por aqui estão contados, eu e o bem-te-vi andamos desolados.

Saudade do tempo da poesia de Zé Geraldo, quando entoávamos a música do trabalhador que construía e não podia usufruir: "Tá vendo aquele edifício, moço, ajudei a levantar". Tudo leva a crer que os peões de hoje pouco se importam se estão serrando uma árvore ou poluindo. Só se fala em trabalho. Dá-se graças a Deus quando se tem. Foi-se o tempo da luta de classes. É normal que os ricos tenham muito e os pobres quase nada. Afinal, apenas aqueles conhecem o verdadeiro segredo.

Você deve estar se perguntando: qual segredo? São tantos: o segredo da exploração, o segredo da politicagem, o segredo da bandidagem, o segredo da sonegação, o segredo de casar bem, o segredo de juntar vintém, o segredo da bolsa e, é claro, o segredo dos números que serão premiados na mega-sena ou concurso similar.

Já dizia o profeta: é mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do que um pobre descobrir o segredo.

Nenhuma poesia. Meus olhos vêem insensatez. Meus olhos vêem as lindas árvores da Amazônia sendo derrubadas por peões que enfrentam os profissionais do Ibama pra cumprirem as ordens do patrão. Este, nem sabe mais o que fazer com tanto dinheiro (a ganância é um poço sem fundo). Talvez sirva, entre outras coisas, para pagar uma defesa cara ou a compra de um júri, tal dizem ter acontecido na absolvição do mandante do crime da Irmã Dorothy (outro segredo).

Serra e martelo atravessam a manhã com o paradoxo da construção: destruição.
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2 comentários:

Anônimo disse...

Bela crônica!!

Às vezes acordo com esses barulhos por aqui! Mas aqui já não tem tantas árvores assim faz muito tempo...
Tem uma ou duas na calçada...

ítalo puccini disse...

é, falta, ali, o segredo da poesia retirada da vida. e da crônica também, como esta belíssima sua.