segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Política

Ele enxergava apenas com o olho esquerdo. Por isso, deitar do lado esquerdo virou um hábito. Outro hábito: dizer-lhe carinhosamente que era uma mulher de esquerda.

Nada mais sexy do que duas pessoas que se gostam deitarem uma ao lado da outra na cama, abrirem cada qual seu livro e lerem e rirem e trocarem ideias. Depois, quem sabe, fazer amor, daquele que começa meio por acaso, talvez motivado pela palavrinha tola escrita inocentemente por algum autor de esquerda ou anarquista.

Ou talvez ela estivesse lendo contos eróticos disfarçando a capa do livro com papel de presente, só para que o homem à sua direita não percebesse que ela precisava de motivações ou, pior ainda, descobrisse que fosse (mal) acostumada e afeita a esse tipo de leitura.

Por certo, encapara o livro que nem era seu (pegara emprestado na biblioteca). Ela podia até ser de esquerda, mas de boba não tinha nada. Quanto a ele, podia até faltar um olho, mas esse olho não fazia falta.

Costumava ler livros de esquerda, estava metido em política estudantil, de modo que tudo isso a fascinava, o fato dele gostar de política, mais o fato dele gostar de ler e, é claro, adorava que fosse cego de um olho, mas nunca lhe confessaria.

Talvez no livro de esquerda que ele estivesse lendo, alguma personagem revolucionária lhe inspirasse ao sexo, e, por encontrar deitada do seu lado esquerdo a namorada, sentisse vontade de tocá-la.

Pergunta com os lábios entreabertos, quase a beijando de tão perto: que livro lês? Mente, leio “A mãe”, do Gorki, ele se apaixona na hora e a beija, abraça carinhosamente e diz: te amo, também te amo.

A partir desse instante, não enxergamos mais o da direita ou o da esquerda, embora saiba que, acima dela, nariz sobre nariz, qual lado seu está sendo visto e qual imaginado. Sabe (ou imagina) que, após o sexo, ele voltará a conversar sobre o livro. A não ser que peguem no sono, como daquela vez que...

Dessa vez não dormiram. Ele perguntou se estava gostando do livro, disse que sim, que também sentia vontade de participar de manifestos, que era contra coisas que via, que odiava o sistema etc. e tal. Ele acreditava em tudo que ouvia.

Ela também acreditava em tudo que dizia, mas não entendia bem por que certos lados da vida lhe atraíam tanto, principalmente os que ficavam mais à esquerda, por isso soube desde a primeira olhada que ele seria o homem da sua vida. Mas a vida de anarquista não permitiria uma união conjugal estável enquanto havia todo um mundo a desbravar pelo lado esquerdo: greves, manifestos, revoluções.

In: Jornal A Notícia, Anexo, p.3 (19/01/2009)

Um comentário:

Anônimo disse...

HAHAHAHAHAH adorei esta crônica que eu ainda não lera! Vim aqui procurar uma daquelas duas onde vc sugere e depois reafirma sua sugestão para a criação de bolsa para incentivar escritores ao prêmio Cruz e Sousa.Hoje saiu matéria no DC dizendo que Anita Pires vai analisar a idéia.
Parabéns a voce que utilizou do seu espaço de cronista no Jornal A Notícia para defender idéia que incentiva escritores.Abraço da Fatima de Laguna.