quinta-feira, 29 de março de 2007

Farra-do-boi (crônica)

Estava quieto no meu canto, como sempre faço e como sempre fizeram meus ancestrais bovinos. Do lado materno, tenho ascendência holandesa e, do paterno, ainda não sabemos. Um primo estuda a árvore genealógica da família no intuito de esclarecer nossas raízes. Por falar em raízes, estou com fome. Dirigia-me ao pasto quando me cercaram e me prenderam. “Para mais tarde”, disseram.

Meu dono não me tratou mal, nada me faltou. Os humanos pensam que não entendemos a língua deles, por isso falam coisas terríveis quando estamos perto. Fato é que nos tratam bem, para em seguida nos matar. De nossas esposas, tiram o leite. Enfim, dão pouco comparado ao que nos tiram.

Não gostei de uma conversa que ouvi. Na verdade, estou com medo. Sou um boi velho. Merecia uma aposentadoria tranqüila, ao lado de uma vaquinha. Sei que deve estar pensando que não sou um touro, sei disso; mesmo assim, adoraria uma companheira para ruminar comigo. Falam em farra-do-boi. Da primeira vez que ouvi, fiquei animado, pensei que estivessem organizando uma festinha em minha homenagem.

Uma corda me puxa. Levam-me por uma rua estreita. Qualquer bovino sabe que homenagens não acontecem em lugares assim. Pedras. Atiram em mim? Acertam meu olho direito. Ai!, que dor insuportável! Mais pedras, e gritos. Desato a correr, alcanço a praia. Com o olho que não sangra vislumbro o mar. E se entrasse ali e lavasse o olho para estancar o sangue? Com o olho são contemplo o mar: tão lindo! Lembro de papai me mostrando o mar pela primeira vez... Ai! Que foi isso agora? Enfiam uma vara de bambu no meu dorso. O que deu nesses homens, enlouqueceram?

Desato a correr, apesar da dor. Quase não enxergo, atropelo alguma coisa. Pulo a cerca de uma casa. Nunca havia feito isso, fui um boi comportado. Consigo alcançar a rua. A multidão me persegue, agora mais enraivecida do que antes. “Isso é pelo menino atropelado”, escuto alguém gritar com ódio do alto do telhado de uma casa, no momento em que me atira uma pedra gigante. Sou atingido e cambaleio; por fim, desabo.

O homem que me atirou a pedra se aproxima, exibe-se para os outros: passa uma vara no meu dorso, desenhando ranhuras de sangue. Pressinto que vou morrer. Lembrei de um atalho que leva para o penhasco rente ao mar. Com as poucas forças que ainda me restavam, levantei num ímpeto e saí cambaleante. A multidão me perseguindo. Subi aquele calvário com um único pensamento: saltar.

In: Caderno Anexo (Jornal a Notícia - 19/03/2007)

Um comentário:

Anônimo disse...

Esta é uma das melhores crônicas que já li na vida... triste, verdadeira e tocante...