quarta-feira, 28 de março de 2007

E tudo estava aceso (crônica)

“Quem não tem o paraíso dentro

jamais o encontrará fora”

Angelus Silesius

As árvores acendiam-se de frutos vermelhos. O céu estampava-se de estrelas. O vento balançava sininhos. Quem disse que o amor só acontece na adolescência? O amor acontece quando tem de acontecer.

E tudo estava aceso: os olhos cintilavam, o coração em novo ritmo, os pássaros à janela, café fumegante. E tudo conspirava. Um dia assim merece um vestido vermelho de cintura marcada e sapatilhas delicadas. Num dia assim somos irresistíveis, não há quem não se curve ao nosso encanto. Feito um conto de fadas, por onde quer que passemos, tudo se transforma, o chão floresce pétalas de rosas, o ar se enche de pássaros e as árvores de flores e frutas vermelhas. Erguemos o braço e apanhamos uma cereja.

Não era Chapeuzinho Vermelho, nem Branca de Neve, nem Cinderela. Era ela e o mundo numa esfera acima, onde não há temores, nem rumores, nem reticências, onde reina a harmonia perfeita. Mas como chegar lá? Como ser completo sem temer? Melhor não refletir agora. Existe um outro tempo para isso. Há tempo para tudo nessa vida. Agora é tempo dos riachos, do caminhar descalça pelos bosques, de sentir a leveza dos vôos da floresta, de sentir-se pulsando, de sentir-se dentro. Ergue os braços e voa.

De cima tudo se transforma, entra-se num vácuo de perfeição. Não voamos sós, muitos nos acompanham. Tantos outros que conseguiram estar além e acima do cotidiano, da matéria, da mesmice, das preocupações inúteis. E muitas vezes o vôo, feito o das aves, toma a forma de um “V”, onde os voadores se revezam, se intercalam, sem que precisem dizer nada, e assim, num esforço menor e em pleno equilíbrio, voam suaves enquanto as penas brilham raios solares.Para estes, tanto faz subir ao infinito, ou descer a terra, pois não se contaminam, não se queimam, nada os deforma, apenas os transforma. Ficam por desprendimento, por contentamento, ou por compaixão daqueles que levam o peso de Sísifo. E há tantos destes pesos, quanto há homens.

Por isso o dia acende. Por isso o sol brilha e as estrelas sorriem. Para que olhemos, sentimos e vibremos. Não era para ser tudo tão penoso. Era para ser tudo mais vôo e cintilância.

Nos caminhos do bosque, nas florestas encantadas, em algum lugar, em algum momento, alguma coisa deixou de brilhar, alguma coisa quer ser retomada, algum sonho quer acordar, ou desejo, alguma flor à beira do caminho, um canto de passarinho, um poema, um vestido, um olhar de criança, um saquinho de pipoca após a missa, chinelos perdidos no riacho, bonecas pedindo roupinhas, mãos pedindo carinho, lua sonhando beijos.

Em algum lugar está o elo, não perdido, à espera. Não é lá fora, nos arranha-céus, nos carros novos, nem na casa maior e mais cara. Está em outro lugar. Ouve-se um riso de contentamento. Vem da terra? Vem do céu?Vem do universo dentro.

In: Caderno Anexo (Jornal A Notícia - 26/03/2007)

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