segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Memória (crônica)

O primeiro a me notar é o cão. Late da porta dos fundos da casa. Ao ter certeza de que sou eu quem chega, corre de um lado a outro, esbaforido.
– É um bobo, diz mamãe. – Nunca viu gente.
Abraço o cãozinho. Ele me deixa alegre.
Ela pergunta se quero café. Digo que não, já havia tomado em casa, antes de sair.
– Tudo bem? – Cumprimento com um beijo.
– É, vai indo. – Esqueço de tudo e sinto fraqueza nas pernas.
Gostaria de esquecer algumas coisas, penso. Convido: – Vamos olhar o jardim?
Busco a bengala. Começamos pelo canteiro que contorna a casa, na lateral esquerda. Ela se agacha para erguer a haste que sustenta uma dália exuberante. Pede que eu busque um barbante. Prende a flor ao bambu.
– Não achas linda? – pergunta.
– Sim, mãe, belíssima.
– Nunca mais vi a gata. Acho que a envenenaram também.
– Ela estava no parapeito da janela quando cheguei.
– Estava? Não lembro.
O cachorro pula alegre nos meus joelhos, faz festa.
– Os antúrios estão pedindo terra. Precisas me levar na floricultura para comprar barro.
– Claro, mãe, no sábado, quem sabe...
– Gostaria de comprar algumas mudas de verduras. As da outra vez não vingaram.
– Que pena!
– Os antúrios estão lindos, né! Queres levar alguns pra enfeitar tua casa?
– Não, mãe, obrigada, gosto de vê-los na natureza. Tem jabuticaba?
– Talvez.
– Veja só quem está deitada sob a árvore. Que lugar mais gostoso a Mimi escolheu.
– Sua porqueira, diz mamãe com carinho. E a enxota para que nós duas nos enfiássemos sob a árvore e comêssemos alguns frutos doces.
– Viste o jasmim? Carregado de botões. Teu pai adorava esta flor. Pediu que plantasse perto da janela do quarto. Disto eu me lembro bem. Mas outras coisas se apagam. Faz dias não vejo a gata. Acho que a mataram.
– Mãe, ela esteve agorinha aqui, sob a árvore.
– Esteve?
Noto uma tristeza aflita em seu rosto. Tento amenizar.
– Eu também não me lembro de tudo. Certas passagens da vida são brancas como as pétalas do jasmim. Às vezes é bom esquecer.
–Vamos sentar na varanda e ver o tempo passar, convido. - Na varanda o tempo passa mais devagar.
– Olha aquele casal de passarinho namorando no fio de luz.
– E aquela borboleta.
– E a rosa do amor. Preciso podá-la.
– Não, mãe, deixe-a assim, bela e selvagem.
– O portão precisa ser pintado.
– Deixe-o assim, é o registro do tempo sobre ele, uma espécie de memória.
O cão chega esbaforido e se deita no meio de nós. Desatamos a rir. Mais uma manhã para se guardar na memória.

In: Jornal A Notícia, Anexo, p. 3 (10/11/2008)

5 comentários:

J.R. Lima disse...

Lindo, isto, Suzana!

Até quando a memória falha, a gente lembra que é feliz.

Adri.n disse...

Meus jasmins estao em flor, fico tao feliz com tantas flores brancas em frente a varanda! Que gostoso encontrar mais alguem falando deles tao lindamente!!

Anônimo disse...

Já fico pintando a imagem de teu jardim na mente, que lindo que deve estar!
bj

Ane disse...

Lindo texto!
A memória poderia só falhar para coisas ruins. Para as boas, que fiquem para sempre em nossas lembranças!
Abraço!

Cynthia Lopes disse...

Lindo Suzana, aumulemos mesmo momentos de se guardar na memória, dias felizes... porque o tempo passa, mas estes momentos ficam na alegria das lembranças. bjs