segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Despedida

Tchau. Despeço-me sem lágrimas. Não foste o melhor. Contudo, não foste o pior. Em alguns momentos, confesso, desejei a tua partida, mas nada disse, silenciei e esperei. Alguns te dirão: já vai tarde.

Virou hábito despedirmo-nos do ano que se vai. Como se o ano fosse uma coisa palpável. De certa forma, é. Podemos imaginá-lo uma linha na qual pontuamos os acontecimentos de um período, entre janeiro e dezembro. Nesta linha ou percurso, podemos nos situar e assim fazer uma retrospectiva pessoal.

Ao delinear a retrospectiva pessoal você pode se surpreender com quantas coisas conseguiu fazer ou com quantas não conseguiu. Pode ser que o tempo tenha sido traiçoeiro com você, ou você com ele. Não é o ano que é bom ou ruim. É o homem que tropeça aqui e acolá, na tentativa de acertar. Vale a pena se despedir ou não há qualquer fundamento neste rito de passagem que todo ano se repete?

Tenho por hábito não começar nada realmente novo em dezembro. Desacelero no fim de novembro. Dezembro é tempo de fechar as arestas, concluir. Dezembro é fechamento, acerto, reflexão e despedida.Despedir-se é desapegar-se. Largar o velho. Idéias que não funcionam precisam ser abandonadas. Pensamentos que nos fazem mal é melhor largar, soltar, para começar o ano livre das velharias. Velharia é o que não serve pra nada, como a mágoa guardada na mala. Velharia é deixar de ir à praia ou colocar um biquíni porque se está acima do peso. Velho é o que nos limita de viver bem. Novo é o que nos deixa feliz.

Cada pessoa pode ter seu próprio rito de passagem. O meu inclui solidão e natureza. A natureza me realinha para o novo ano que chega, mostra-me os enganos, os excessos, reconduz-me para o caminho do meio e da verdade, me dá energia e limpa os meus pensamentos.

Com as árvores aprendo a ser generosa: oxigênio, folhas, madeira, flores, frutos, é o que nos dão, sem pedir nada em troca, apenas que paremos e observemos; as pedras me falam de força e paciência; as montanhas me sussurram as grandes verdades que estão bem diante dos olhos e não enxergamos; as ondas do mar me ensinam que a alegria ora vai, ora vem (pra que desesperar?); as flores, lindas e efêmeras, parecem dizer: em tudo há beleza, mas passa, saiba olhar no tempo certo.

Termino o último pedacinho da linha do ano tomando muitos banhos, de lagoa, mar, cachoeira; deslumbrando-me com o vôo de um pato selvagem, deixando a pele branca receber com muita calma o primeiro sol. Largando-me de tudo. Dos papéis que exerço. Para ser aquela que verdadeiramente sou. Eu sou.

Assim, depois de amanhã, quando você se for, ano velho, estarei pronta para te soltar. É muito provável que não faça nenhum pedido, apenas mergulhe dentro de mim, feito um pato selvagem, em busca daquele tesouro que todos levam dentro.

In: Jornal a Notícia, Anexo, p. 3 (29/12/2008)

domingo, 21 de dezembro de 2008

Poema de Natal

Quando a festa termina
ajudo a limpar e organizar a casa:
junto papéis, pedaços de fitas e laços jogados pelo chão.
Mais tarde, antes de dormir,
tento unir os pedaços perdidos da alma e da festa.
Então uma estrela brilha no alto do céu do meu quarto
e eu durmo feito o Jesus menino.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Antes do Natal

Não sei quantos anos tinha quando, pela primeira vez, ajudei na faxina de Natal. Limpávamos a casa inteira: forro, sótão, paredes, chão, janelas (vidros e venezianas). Na certa, atrapalhava mais do que ajudava.

Se não me engano, começávamos no início de dezembro. A casa era enorme e cheia de esconderijos. E havia o pátio, com o jardim da frente, os canteiros dos fundos, o gramado, o galinheiro e o pomar que se estendia até o rio. No rio havia a praia para os banhos de verão. Outros tempos.

Cada pedaço da casa era limpo e organizado. Tirava-se tudo dos armários, limpava-se muito bem, escolhia-se o que ficava e o que não servia, para descartar ou doar. Havia tarefas para todos: mãe, irmãs, irmãos e pai. O rancho onde se guardavam bicicletas e ferramentas também passava pelo processo. Até o galinheiro. As galinhas ganhavam gamela nova e água fresca.

Tantas eram as tarefas que temíamos a chegada do Natal, antes que tivéssemos dado conta de fazer o pretendido. Mas isso nunca aconteceu. Outro receio é que não sobrasse tempo para a compra dos nossos presentes. Isso também nunca aconteceu.

Na véspera de Natal, a cozinha mais parecia um restaurante: mesa cheia de fôrmas de cuca e doces, galinhas sendo recheadas antes de assarem, forno em brasa. Um exército de pessoas trabalhava sem nenhuma pressão ou briga, na mais perfeita harmonia e alegria. Verdade e saudade.

De tanto olhar e ajudar, acabei aprendendo as tarefas. Quando minhas irmãs começaram a trabalhar fora, passei a fazer muitos dos serviços da casa, sob o comando da mãe. Ela acordava às cinco horas da manhã e acabava dormindo no sofá, com a TV ligada, de tanto cansaço. Abria os olhos quando um filho chegava do trabalho, cumprimentava e tornava a fechá-los de forma automática.

Enfeitar o pinheiro e fazer o presépio eram nossas tarefas natalinas favoritas. Cortar o pinheiro dos fundos da casa, que todo ano brotava, era serviço para homem. Enfeitá-lo, serviço de mulher. Os menores penduravam apenas uma bola ou cabelos de anjo na parte mais baixa da árvore, supervisionados pelos irmãos mais velhos.

Alguns preferiam enfeitar o pinheiro, outros, fazer o presépio. A cada ano montávamos de um jeito diferente. Toda a vizinhança vinha à nossa casa ver o cenário do nascimento de Jesus. Não havia luxo. O jogo de peças era o de sempre: menino Jesus, José e Maria, três ovelhinhas, uma vaquinha e um boizinho. O resto, inventávamos: caminhos, árvores, casas, pessoas, bichos. E nem conhecíamos Franklin Cascaes.

In: Jornal A Notícia, Anexo, p. 3 (15/12/2008)

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Dasabrigados (crônica)

– É aqui, pai?
– Sim filha, é aqui.
– Gostei.
– Olhe o seu quarto novo...
– Que lindo, pai!
A mãe prepara o primeiro almoço na casa nova.

Anos mais tarde, numa enchente devastadora, a casa sumiria, o morro desabaria em lama sobre o quarto, cobrindo boneca, menina, mãe, pai. Engolidos pela montanha.

Ou então: a casa desabou, mas os três se salvaram por um triz, quis o destino (ou a sorte, ou o anjo) que estivessem fora, em viagem, quando a avalanche desceu. Ao retornar, o pai olha a casa desabada e não acredita, a mãe perde a fala, a filha chora.

Caminham os três desalentados pela rua. Ainda ontem tinham casa, quarto e cama, de repente, tudo tomado de lama. E a alma? Molhada de chuva.

Desorientados. Quem tirou a casa que estava aqui? Cadê nosso porto seguro? É na casa que SOMOS, é na casa que tiramos a roupa, tomamos banho, dormimos, fazemos amor com o companheiro, guardamos os segredos, os sonhos, os brinquedos. É na casa que choramos.

E num estalar de dedos, ou um lance de dados, tudo nos é tirado, o brinquedo, o sonho, a casa, a liberdade.

Abrigados num abrigo. A solidariedade aconchega. Comida não falta, nem colchão, mas dentro, meu Deus, uma memória que não se apaga, a lembrança da construção, dos sacrifícios de anos de trabalho, do dinheiro juntado para comprar a casa, os móveis, as roupas; a primeira olhada pela janela da casa, a vista da cozinha, o cheiro de café, tudo vem e vai enquanto a noite cai.

Alguns saíram às ruas saqueando coisas, desespero aliado a despreparo, falta de paciência, medo. E se a coisa piorar, e se a chuva não passar, e se o barro não secar, como será?

O morro do baú. Era uma vez o morro do baú. Depois veio um dilúvio, quarenta dias e quarenta noites. Lama e mortes.

A casa, o porto seguro, refúgio das dores do quotidiano, alicerce onde reinamos. A casa caiu, a casa sumiu, a casa cheia de água. O coração cheio de lágrima.

Mas a força brota, de algum lugar a força brota, de mangas arregaçadas as paredes são lavadas. A vida segue, vamos em frente, daqui mais uns dias, mais uns meses, mais uns anos, quem sabe...
– É aqui, pai?
– Sim filha, é aqui.
– Gostei.
– Olhe o seu quarto novo...
– Que lindo, pai!
A mãe prepara o primeiro almoço na casa nova.
In: Jornal a Notícia, Anexo, p. 3 (05/12/2008)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Dilúvio (crônica)

A chuva começa com um pingo e mais outro. Também pode começar com um dia de céu azul. Talvez o indivíduo saia de casa pela manhã com sol e se arrependa de não ter calçado botas de borracha. Nenhuma certeza de que o tempo não mudará entre a manhã e a noite, entre a ida e a volta do trabalho, entre o anoitecer e o amanhecer.

Os noticiários anunciaram que choveria acima do normal, mas o que seria acima do normal para quem já estava numa maré de chuva há meses, com praticamente todos os finais de semana do semestre chovendo? Nenhuma praia ainda, a pele branca, mas isso era o de menos, até porque a saúde está nas peles que menos tomaram sol.

Nutrimos a falsa idéia de que se pode tudo, de que natureza é uma coisa que nem mais existe, afinal, a água é da empresa que nos vende; a energia da empresa que nos cobra; e a terra em que moramos foi comprada... ainda não pagamos pelo ar que respiramos.

Moramos em prédios, moramos apertados e nos assustamos ao encontrar o supermercado lotado em pleno domingo ao meio-dia, sendo que estavam lá apenas os menos atingidos, porque os mais atingidos estavam tentando segurar barrancos ou ilhados ou em abrigos.

Sensação sinistra, por pouco a coisa não fica ainda pior, pois no domingo à noite as águas baixavam em Brusque, mas subiam em Itajaí. Nem uma tristeza se dissipara, outra, ainda maior e mais pungente, começava. Somente na segunda-feira os jornais de porte nacional se deram conta do tamanho da catástrofe.

Geólogos e geógrafos tentam explicar, engenheiros mostram projetos. A grande verdade é que o mundo parece pequeno e insuficiente para a quantidade de pessoas que o habitam. E as pessoas que o habitam perderam a noção do bom senso. O conhecimento produzido não é aplicado para uma efetiva melhoria da convivência humana no planeta Terra. Nem países mais evoluídos conseguem isso, imagina o Brasil.

Dias antes, o comércio focado em vender para o Natal, as famílias preocupadas em consumir. Uma insatisfação coletiva pairava no ar, nada é suficiente para a felicidade permanente. Então vem a catástrofe e pega todos de surpresa. De maneira que ninguém mais tem certeza de nada, olhamos atônitos para a estatística dos mortos e dos sonhos soterrados ou submersos.

Deveríamos estar mais preparados para as adversidades, mas a ilusão nos rodeia. A vivência em abrigos pode nos ensinar a ver o outro mais de perto, devemos ajudar os mais necessitados agora e adiante. Urge que cuidemos da mãe natureza e que as prefeituras planejem e fiscalizem melhor. Liberar áreas impróprias em troca de favores políticos, cortar morros e devastar matas são cenas corriqueiras em Santa Catarina. Adiante a catástrofe.

Precisamos evoluir, nos tornar mais sábios e fraternos. Isso não será fácil, pois o sistema que nós ajudamos a criar transformou-se em um jogo de interesses. Vivemos numa imensa ilha, o que atinge um, inevi-tavelmente, atingirá o outro.

In: jornal A Notícia, caderno Anexo, p. 3 (01/12/2008)