segunda-feira, 30 de junho de 2008

Círculo de leitura
Gosto da idéia de um círculo de leitura. Círculo-aconchego. O círculo dá idéia de infinito, símbolo utilizado por Guimarães Rosa ao dar (ou não dar) por encerrada a obra "Grande sertão: veredas". Alguém pegará na outra ponta do fio e dará continuidade, tal diz João Cabral, no poema "Tecendo a manhã" (um galo sozinho não tece a manhã: ele precisará sempre de outros galos...).
O Círculo de Leitura da EDUFSC me convidou para falar um pouco sobre meu encontro com a leitura, nesta quinta-feira, às 17 horas.
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A vida é pra valer (crônica)

Um ano tem 365 dias, aprendi nas aulas de geografia. Meio ano, então, haverá de ter a metade disso (utilizo um pouco do que aprendi nas aulas de matemática): 182 dias (aproximadamente).

Há 182 dias o ano de 2008 começou. No primeiro dia de 2008 fez sol e havia restos de oferenda na areia da praia. A praia estava cheia no período da tarde. A manhã estava mais para pássaros.

Há 182 dias, João fez sua lista de metas para o ano de 2008. Mas, hoje, João nem se lembra mais do que anotou naquela folha de papel. E se João fosse procurar pela folha, não a encontraria, pois numa certa tarde azul, sua filha pequena fez dela um barquinho que naufragou numa bacia de águas tranqüilas.

Cecília, mais cuidadosa do que João, anotou seus planos na agenda bonita de capa dourada, presente do namorado. Os planos de Cecília ocuparam a primeira semana da agenda. Passados seis meses, ela finalmente se dá conta de que, ao jogar fora a agenda quando findou o namoro, jogou fora seus planos.

Pedro não fez nenhuma anotação, pediu saúde, que o resto a gente leva, com saúde tudo se ajeita. Pedro tem 80. Vestiu-se de branco no primeiro dia do ano, passeou, cumprimentou os vizinhos, comeu carne suína (mas não liga muito pra essas superstições). Pedro é uma rocha.

Rosana, neste exato momento, pára de ler a crônica e tenta lembrar dos planos que fez. Busca na memória, recorda que anotou num dos cadernos. Vai à estante da sala, procura entre a lista telefônica e os poucos livros. Lá vai Rosana consultar, avaliar. Ainda bem que Rosana costuma ler jornais e crônicas.

Bem longe daqui está Teresa. Teresa toma o café da manhã e se dá conta de que estamos no dia 30 de junho e de como o ano correu, parece uma lebre. Teresa se sente uma tartaruga. Não faz mal. Teresa vai cuidar das rosas e das gérberas no jardim. Ah, a cerejeira japonesa está florida. Não, não dá frutos, apenas flores. Teresa não se casou, não teve filhos. Apenas flores.

O nome do barco é "Esperança". Volta com pouco peixe. O pescador pesca por prazer. Um aqui, outro ali. Tem a vida ganha, porém módica. Os filhos todos casados. Foi com "Esperança" que ele colocou comida no prato da família. O plano é pescar, descansar e brincar com os netos.

Otávio, neste exato momento, calcula quanto conseguiu juntar de dinheiro. Acha pouco. Pensa num jeito de juntar mais no segundo semestre. Investe no agronegócio. Desmatou, vendeu madeira, criou gado, lucrou. O neto de Otávio não sabe falar direito, chama o vovô de "Otário".

A cronista não fez planos para 2008. Mas anotou na primeira página de sua agenda dois versos de Vinicius de Moraes: "A vida é pra valer/ A vida é pra levar".
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terça-feira, 24 de junho de 2008

O arqueiro

pálpebra semicerrada
no papel alvo

tiro certeiro

o poeta flecha-se
no papel fechado

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Poesia no youtube

Das casas

vídeo produzido pelo artista plástico Tadeu Bittencourt em parceria com o poeta Douglas Zunino.

Alumbrar-se aqui

O segredo (crônica)

Constroem um edifício bem do lado de onde moro. Aquela construção vertical, estruturada em ferro e cimento. Antes de instalar um monumento desses para resguardar humanos, é preciso fazer o fundamento. O proprietário ou construtor teve a infeliz idéia de fazer o tal fundamento aos domingos, vejam só, que coisa mais sem fundamento, ora, domingo é o dia mais silencioso por aqui, o dia em que nós, trabalhadores, costumávamos dormir até mais tarde.

Tenho acordado com barulho de martelo, serra, conversas... Esse pessoal que trabalha em construção começa cedo. Isso tem me deixado de mau humor. E o que é pior, uma construção desse porte leva tempo. Por enquanto, o barulho de martelo vem da construção do barraco de madeira que constroem para servir de morada aos peões da obra.

Já senti, várias vezes, vontade de abrir a janela e gritar: "Ei, parem de martelar". Ou de deixar uma carta pedindo por silêncio. Mas tudo isso seria inútil. Notei que estão loucos pra derrubar uma ou outra palmeira esquecida no entorno do terreno e não quero revanche. Sinto que meus dias por aqui estão contados, eu e o bem-te-vi andamos desolados.

Saudade do tempo da poesia de Zé Geraldo, quando entoávamos a música do trabalhador que construía e não podia usufruir: "Tá vendo aquele edifício, moço, ajudei a levantar". Tudo leva a crer que os peões de hoje pouco se importam se estão serrando uma árvore ou poluindo. Só se fala em trabalho. Dá-se graças a Deus quando se tem. Foi-se o tempo da luta de classes. É normal que os ricos tenham muito e os pobres quase nada. Afinal, apenas aqueles conhecem o verdadeiro segredo.

Você deve estar se perguntando: qual segredo? São tantos: o segredo da exploração, o segredo da politicagem, o segredo da bandidagem, o segredo da sonegação, o segredo de casar bem, o segredo de juntar vintém, o segredo da bolsa e, é claro, o segredo dos números que serão premiados na mega-sena ou concurso similar.

Já dizia o profeta: é mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do que um pobre descobrir o segredo.

Nenhuma poesia. Meus olhos vêem insensatez. Meus olhos vêem as lindas árvores da Amazônia sendo derrubadas por peões que enfrentam os profissionais do Ibama pra cumprirem as ordens do patrão. Este, nem sabe mais o que fazer com tanto dinheiro (a ganância é um poço sem fundo). Talvez sirva, entre outras coisas, para pagar uma defesa cara ou a compra de um júri, tal dizem ter acontecido na absolvição do mandante do crime da Irmã Dorothy (outro segredo).

Serra e martelo atravessam a manhã com o paradoxo da construção: destruição.
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terça-feira, 17 de junho de 2008

Céu de silêncio

Imponente
a ave nos surpreende
cheia de penas
branco
e azul

Nenhum grasnado
tudo ao seu redor
pede silêncio

Condor, gavião, águia?
não sabemos teu nome

Ave-maria do céu
protegei as rapinas
do olhar de rapina do homem

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Carta para Adriana Lisboa

Adriana,

Em Brusque tudo igual. Isso não é uma boa notícia. Quer dizer que o rio continua sendo poluído, os morros desmatados e transformados em loteamentos, e a nítida impressão de que as pessoas não estão nem aí, ou angustiadas em seu canto, feito eu.

Já te falei numa outra carta que, de certa forma, não simpatizei contigo num primeiro momento, foi durante o programa de entrevista da TV Educativa (agora TV Brasil) chamado "O Mundo da Literatura".

O jornalista fazia umas perguntas meio óbvias e você dava respostas completamente diferentes, quase denotando arrogância. Você, tão jovem, falando daquele jeito... Na verdade, era o entrevistador que não dava conta das tuas respostas, ou não te conhecia. Enfim, não foi este primeiro momento que me motivou a te procurar. Além disso, são tantos os autores e títulos publicados nacionais e internacionais que nos chegam.
Qual escolher?

Durante a leitura do "Rascunho" (jornal literário de Curitiba), topei com você de novo, no artigo "Como se constrói um personagem", de Antônio Torres. Desta vez, fui ao Google pesquisar, digitei "Adriana Lisboa" e encontrei teu site. Tudo me encantou, amor à primeira vista. Mas ali havia apenas resumos dos teus livros, as capas, os prêmios e uma espécie de resenha biográfica.

Em Brusque há apenas três livrarias, sendo que duas delas são papelarias. Foi na livraria que vende apenas livros que encontrei teu "Rakushisha". Confesso que não entrei lá à tua procura, minha intenção era comprar um presente para um amigo que aniversariava, mas dei de cara com teu livro, lindo, capa ao meu gosto.

Acabei não comprando naquele momento o presente do meu amigo e me dei de presente teu livro. Iniciei a leitura na mesma noite. Pressa e ao mesmo tempo receio. O paradoxo da leitura de um livro bom: querer e não querer chegar ao fim.

Quem lê um quer ler mais. "Um beijo de Colombina" foi comprado numa das minhas idas a Floripa, durante as férias. Novamente a sensação de não conseguir desgrudar, levantava o rosto apenas para um respiro mais profundo, vontade de entrar, mergulhar no mar, nadar. Nessa época já conhecia teu blog, que por sinal é ótimo, pois com o mesmo jeito aparentemente displicente com que narras teus livros, discorres sobre temas os mais variados.

Foi na Feira do Livro de Joinville (abril) que o "Língua de Trapos" me acenou de um estande. Rui de Oliveira, numa das poucas mensagens que trocamos, comentou que ilustrara um livro teu de poesia (classificado pela Rocco como livro infantil). Foi meu presente de fim de feira, me acompanhou na rodoviária solitária. Enquanto o ônibus deslizava veloz a Brusque, eu e minha bonequinha de trapos, abraçadas, olhávamos as estrelas minúsculas luzirem no céu.

Não tenho pressa, cada livro teu me chega de uma forma especial. Não quero que acabem, gosto de saber que falta ler alguns. Tento me equilibrar entre o desejo de ler todos e o de guardar um pouco para saborear mais tarde, feito um doce raro.

Abraço e sol!

Suzana

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terça-feira, 10 de junho de 2008

Receita de amor

Receita para paixão virar amor?
não sei

Conheço a receita de pão:
água, farinha, sal e fermento:
junta, mexe, descansa
põe na forma
deixa crescer.
Cozinha-se ao calor do forno

Na primeira vez que veio,
ela disse: só tem pão
ele não se importou,
se fartou

Depois de casados
ele elogiava
o cheiro de pão que vinha do fogão
e a puxava pela mão...
Em seguida, famintos
tomavam café com pão

Vai ver, a receita de pão
era de amor

In: Município dia-a-dia, Caderno Mais: Amor, 09/06/2008

terça-feira, 3 de junho de 2008

Alegria (crônica)

Alguns domingos são muito chatos, não aquele.

Tudo começou no sábado. Uma estrela despencou do céu bem diante dos seus olhos. Um facho de luz se consumiu no infinito. Sentia-se a escolhida para aquela visão. Quem mais viu? Passou o domingo perguntando a todos que encontrava. Ninguém. Somente ela olhou para o infinito no exato momento em que a estrela escrevia-se no céu, consumia-se e ardia de emoção na moça que a olhava estupefata, de boca aberta, sem saber o que dizer. Minutos depois conseguiu recuperar o equilíbrio e ter a boa idéia de fazer um pedido: saúde, amor, alegria, dinheiro, sucesso?

Para ser mais precisa, tudo começou antes do sábado, na sexta. O dia estava lindo, a casa limpa, o vaso de laço-de-cetim com botões se preparando para abrir, o pé de buganvília com cachos em flor, veranico, céu azul, brisa, comida feita em casa, ouvindo Yes, vinho. Tudo perfeito. Um livro bom lido aos poucos em vários ambientes da casa. Aproveitamento dos espaços, dos silêncios. Tarde da noite, escreveu um conto diferente, ousava numa nova técnica: uma estrela cadente amarrava o desfecho do texto.

O feriado foi na quinta, dia do Corpo de Cristo, mas que seu corpo estava absolutamente cansado, um dia dado a não fazer nada que não fosse estritamente necessário, largou-se lendo pela casa, comendo (saco vazio não pára em pé). Um privilégio de poucos, fazer exatamente o que der na telha num dia hipotético. Até estranhou. Sentiu um certo desconforto no início, quase que inventa obrigações, acostumada às exigências da modernidade, ao peso da cruz. A rede foi ocupada. De lá avistou um bando de aves cruzar em direção ao norte pouco antes de anoitecer. A lua subiu de ponta apagada no céu.

Era para ser um domingo trivial. A cunhada iria ao sítio buscar telas que o irmão havia pintado. Lá havia tangerinas e sol, deu para sentar no chão forrado de folhas e comer uma, duas, quantas quisesse. Depois houve tempo de olhar o córrego deslizar sobre as pedras, ouvir o canto dos pássaros, olhar e sentir as árvores que quase atingem o céu, jogar conversa fora com a cunhada e a prima, quando algo lhes atravessa a tarde e pousa numa árvore próxima. Uma ave, não qualquer ave, um falcão branco de asas azuis, uma águia rara, um gavião? Não sabiam. Bocas comovidas. Tenta se aproximar. Caminha descalça pelo bosque, com cuidado para não afugentar a surpresa. Observa aquele ser outro: ave, vôo, beleza. Então ouve o barulhinho que saía do chão, um farfalhar contínuo e nervoso: formigas, milhares delas migrando sobre o tapete de outono. Milhares de vida ao seu redor. Nenhum carro, nenhum motor.

Na casa da mãe, durante o café da tarde:
- Mãe - diz a filha -, vi um sapo ontem à noite. Um sapo grande...
- É o meu sapo, interrompe a mãe.
Todos se olham embasbacados.
- É, ele está comigo há anos...
Todos gargalham na mesa do café.
- O sapo que viste é gordo, malhado e grande? – pergunta à filha.
- Sim, responde.
- Eu falei. È o meu sapo. Mora no bueiro de dia e passeia de noite pelo quintal... De que estão rindo?

Riam porque estavam felizes. Era domingo. E havia sobrado um sapo velho.